“Música para quando as luzes apagam”, de Ismael Carneppele

Por: Catraca Livre

Esse foi um dia comum, mas um pouco diferente dos outros. Hoje, nada de bom aconteceu comigo. Nada de mal também. Nada que eu não conseguisse suportar ou que eu não pudesse esperar. Como sempre. 

Acordei com minha mãe gritando, como sempre, que estou atrasado. A luz do quarto já está acesa e machuca meus olhos quando tenho que levantar. Esta é sempre a hora mais triste do dia: a porta aberta porque eles não querem que eu durma com ela trancada, a cama quente e a água gelada para escovar os dentes. Meu cabelo é ruim. É encaracolado e faz três meses que não corto. O professor de matemática diz que pareço ter um ninho de rato na cabeça e o Digo ri da minha cara e me chama de ovelhinha.

 Muita coisa passou pela minha cabeça entre o primeiro grito de “tá na hora de acordar”, a luz que foi acesa não sei se por ele ou por ela, meus olhos que continuaram fechados e o segundo grito: “Desse jeito vamos chegar atrasados na casa da sua avó”. Saí dos cobertores para pisar no piso gelado do meu quarto. Pelo menos, não tinha escola. 

Na casa da minha avó estava tudo igual. Minhas tias surpresas com o quanto eu cresci, os meus primos que não querem mais brincar comigo porque me acham estranho, e aquele monte de vaca e de galinha. Pelo menos, ainda me deixam levar o discman. Passei quase todo o tempo dentro do carro do meu pai, escutando o disco do Interpol que o Digo gravou para mim. Do lado de fora, os homens bebiam em volta do churrasco, as mulheres batiam pratos na cozinha e meus primos jogavam bola no quintal. Não precisei ver para saber o que acontecia. Almocei sozinho na sala vendo televisão. Os domingos são todos assim, não importa onde.

Na volta para casa, ela dirigiu o carro porque ele bebeu um pouco demais. Pelo menos alguma coisa foi engraçada, mas eu não ri. Acho que ela também bebeu porque estava toda sorridente. Ela é mal-humorada, quase sempre. Como eu. Estava engraçada, diferente, sei lá. Eles nunca estiveram assim antes, não na minha frente. Pela primeira vez, a gente voltou daquela merda de sítio da minha avó sem ouvir a merda de alguma transmissão de algum jogo entre o Esporte Clube Internacional e qualquer outra bosta de time de futebol, numa emissora AM mal sintonizada no último volume. As pilhas do meu discman sempre acabam quando eu mais preciso delas. 

Lá pela metade do caminho, ele começou a dizer que estava com vontade de vomitar. Ela ria e, nessas horas, o carro andava mais rápido. Fiquei olhando para fora da janela, tentando entender por que eu achava tão triste aquelas casas na beira da estrada. Era como num filme em que nada acontece. Só mais um domingo que anoitece, a fumaça na chaminé se misturando com o vento que quase não há e poucos meninos tentando aproveitar o que ainda sobra do final de semana.

 Quando eu estava quase adormecendo, eles começaram a falar outra vez. “Preciso vomitar”, ele disse. “Vomita para fora da janela, para não sujar o carro”, ela respondeu. Ele virou o rosto para o lado da janela e vomitou contra o vidro fechado. Ela teve um ataque de riso e ele pegou no sono com a cara encostada contra o vidro todo sujo. O carro acelerou e um caminhão buzinou, mas nada aconteceu. Como sempre. 

Cheguei em casa e ainda não era noite, mas também não era mais dia. Liguei pro Digo. Ele veio aqui e fomos juntos para a pracinha da Univates. Não tinha mais ninguém por lá. Ficamos de bobeira nos balanços. Depois começamos a balançar bem rápido para ver quem chegava mais alto. Fiquei com medo e com vontade de vomitar. Depois, a gente parou e ficou olhando para o chão, desenhando na areia, sem muito assunto. Escutamos a música do “Fantástico” sair pela janela de uma casa e achamos melhor voltar. Essa é sempre a pior hora da semana. Lembrar da prova de inglês, dos deveres que eu não fiz e do livro que eu retirei na biblioteca e perdi. É difícil viver. Se pelo menos não existisse escola. Fiquei procurando algumas músicas na Internet e conversando com pessoas que eu não conheço. Bati uma punheta pensando em coisas que eu tenho vergonha de lembrar depois. Tentei dormir. Esqueci de rezar.