Deus e o diabo na terra da divulgação cultural

Como a história de trabalho, dedicação e até agiotagem do projeto AHH! ilustra as boas ideias e a dificuldade pela qual passam os produtores independentes no Brasil

Não é fácil ser um produtor independente em um mercado editorial como o de revistas, repleto de oligopólios e donos do poder endinheirados. Ainda mais se o seu produto não trata de banalidades comportamentais e se propõe a despertar inquietação nos leitores. É justamente lidando com essa situação que Deco Benedykt, 29, e Marcelo Nucci, 26, os criadores do site AHH! e da revista Efêmero Concreto, levam uma vida de pesquisa, criação, produção, comercialização, publicação e distribuição.

Os dois amigos que se conheceram na faculdade dividem, atualmente, a tarefa de sustentar e organizar uma rede de escritores, ilustradores, poetas, produtores culturais e artistas que têm como objetivo divulgar e impulsionar a produção de cultura nacional e independente.

O trabalho presente nas duas publicações, que contam com mais de 50 colaboradores, é resultado de um longo processo no qual Deco e Nucci acertaram, erraram e aprenderam muito. Desde a ideia inicial até as dificuldades materiais e financeiras – passando por diferentes empregos e uma breve experiência com agiotagem – a história da dupla mostra como a motivação acabou se sobrepondo a todo o resto.

O site AHH! foi a maneira encontrada para por em prática a ideia de divulgar e incentivar a produção cultural nacional e independente
O site AHH! foi a maneira encontrada para por em prática a ideia de divulgar e incentivar a produção cultural nacional e independente

A ideia “idiota”

Os dois se conheceram no primeiro ano da faculdade, quando Nucci salvou Deco de tomar o “trote” destinado aos recém-ingressados do curso de publicidade. A partir daí, entre idas e vindas, formou-se a amizade e começaram a surgir os projetos.

“Foi uma época em que a gente fez muita coisa”, conta Deco. “Quando nos conhecemos, eu trabalhava com festas, organizava umas raves e chamei o Nucci para me ajudar. Não deu certo e a gente entrou numa de fazer ilustrações para camisetas. Quando a gente já estava fazendo até estampa de biquíni eu ouvi meu pai conversar sobre revista e falei para o Nucci: ‘Vamos fazer uma revista?’”, lembra.

“Olha em que ideia de maluco, em que ideia idiota a gente começou a pirar, considerando que nós éramos só dois caras na faculdade”, reflete Nucci. “Por exemplo, eu tinha amigos que já eram diretores de arte, que já estavam trabalhando no setor de marketing e vendendo anúncios de empresas. Ninguém pensava ‘vou largar tudo e fazer uma revista’. Mas a verdade é que a gente aprendeu mais fazendo tudo isso do que na faculdade”, diz.

Do primeiro estalo até a realização, muito trabalho, pesquisa e preparação fizeram parte da rotina. “Depois que largamos os empregos, nós ficávamos sentados dias e dias em um quarto só com um colchão no chão, uma vitrola e um notebook”, narra Deco.

Nesse período eles conheceram o fotógrafo Luís Trípoli, que passou a acompanhar o projeto e os convidou para trabalharem como assistentes de arte. “Ele foi uma total inspiração. A gente precisava de um cara que olhasse o que estávamos fazendo de errado e falasse ‘tá uma merda’”, diz Nucci.

CulturAHH!

O mote da revista seria divulgar novas produções artísticas. A dupla trabalhava, aprendia, juntava dinheiro e o projeto ia se consolidando. Enquanto procuravam um local para trabalhar, surgiu a opção pelo site.

“Depois de um ano de briga a gente conseguiu aprovar o projeto pela Lei Rouanet”, conta Nucci. “Mas não dava para bater na porta da Nestlé e pedir um milhão de reais pra fazer uma revista, principalmente pra quem nunca fez uma revista na vida”, explica. “A gente pensou então em fazer um site para começar a divulgar o nosso trabalho, onde o conteúdo seria mais barato e seria possível já criar uma identidade”, complementa.

A produção do site aumentou enquanto a “equipe” já estava fixada na casa onde hoje funciona a Estufa. O intercâmbio entre os diversos habitantes do local ajudou no crescimento do projeto. “Era o famoso ‘escambo’ na casa. As pessoas dividiam o espaço com a gente e ajudavam quando precisávamos”, diz Deco.

Nessa época, foram feitas 130 entrevistas com os participantes da “rede”.  Os dois foram entrando em contato com pessoas que já conheciam e/ou de quem admiravam o trabalho. “Isso foi criando uma rede”, observa Nucci. “Às vezes alguém não pode colaborar, mas indica outro que já conheceu, que admira ou que fala sobre o mesmo assunto. Isso vai criando uma malha boa de gente com a qual podemos contar”, afirma.

Zeca Martelinho

Mesmo com o site se consolidando, a ideia da revista nunca saiu da cabeça. Mas não havia mais sentido em ter dois meios que tratassem dos mesmos assuntos. Foi quando a dupla se envolveu com o tema das cidades. “O que nos fascinou foi a relação entre arte e cidade”, explica Nucci. “Pensamos em trabalhar como a literatura, as artes plásticas, a fotografia se relacionavam com os espaços públicos”, define.

Nucci e Deco na estufa, seu local de trabalho
Créditos: Brunno Marchetti
Nucci e Deco na estufa, seu local de trabalho

Mas, para isso, era preciso dinheiro. Deco fala sobre as dificuldades financeiras de colocar em prática a ideia: “As marcas não querem apoiar um projeto que tem cinco mil exemplares. Elas só querem ouvir proposta se tiver pelo menos 20 mil. Então é difícil para um produtor de revista impressa de médio e pequeno porte conseguir anunciantes e financiamento”, aponta.

Uma campanha bem-sucedida de crowdfunding no Catarse, plataforma de financiamento coletivo, ajudou a levantar o necessário para parte do lançamento da primeira edição, mas uma imprevista fraude com clonagem de cartões dificultou a finalização da segunda. Assim, a quantia faltante foi conseguida através de um meio não muito seguro: com o “Zeca Martelinho”. “A gente conseguiu uma grana com um agiota, o Zeca Martelinho”, relata Deco. “Foi uma reviravolta incrível. Só conseguimos pagar no último dia, quando já havíamos sido ameaçados de perder nossos dedinhos”, lembra.

Segundo Deco, essa é uma das dificuldades pelas quais passa o produtor independente. “O banco não acredita em você, o diretor de marketing não acredita em você. Você quer produzir e só vê uma saída que promete dar uma grana boa da noite para o dia. Aí você acaba no centro da cidade, na porta do Zeca Martelinho”, lamenta.

Efêmero?

Chegando a sua terceira edição, o trabalho da revista Efêmero Concreto é motivo de orgulho para seus criadores, que já contam com a ajuda de um grupo fundamental de pessoas, como Thiago Rosenberg, editor, um dos idealizadores do projeto e autor do nome da publicação.

O objetivo da “equipe” é despertar a reflexão na cabeça das pessoas. “Todos nós vivemos na cidade, mas não pensamos nela”, explica Deco. “Ela é um lugar onde acontece muita coisa, vive muita gente e há muitas inspirações. Mas ela nos inspira e o que damos em troca? A revista é uma troca”, argumenta.

Nas páginas repletas de fotografias e ilustrações é possível encontrar ensaios, intervenções, poesias e entrevistas. A intenção é que a liberdade dada aos colaboradores resulte em algo especial, que provoque no leitor a vontade de fazer o mesmo, interagir com o espaço urbano.

A revista propõe que os cidadãos pensem na posição que ocupam diante da relação arte-cidade
A revista propõe que os cidadãos pensem na posição que ocupam diante da relação arte-cidade

O incentivo à nova produção cultural não foi esquecido. “O legal é balancear” observa Deco. “Procuramos colocar um cara foda, com nome, do lado de outro que nunca teve espaço em um meio impresso. E todos são pagos da mesma forma, claro”, conclui.

A Rede

Os projetos não param por aí. A ideia é que a revista seja futuramente uma plataforma autossustentável em que um grupo de indivíduos pague por sua manutenção. “Como manter uma revista gratuita e, ao mesmo tempo, cobrar? Temos que convencer as pessoas de que, quanto mais elas ajudarem, um número maior de gente vai receber a revista de graça”, explica Nucci. A distribuição é gratuita e manual, feita com o carrinho de feira da avó de Deco.

A “gestão” democrática, por enquanto, já funciona. Pelo menos quanto ao conteúdo. Como leitores e colaboradores vivem de fato na cidade e são próximos aos temas da revista, qualquer um pode contribuir. Para eles, quanto mais as pessoas se sentirem parte do efêmero concreto urbano, mais a meta vai sendo atingida. “Nossa ideia não é lucrar com a revista, é ter uma continuidade”, conclui Nucci.

Hoje o AHH! não se vê como um coletivo ou algo parecido, mas sim como uma verdadeira “rede” de produtores, artistas e pessoas variadas que passa por uma metamorfose constante. Mesmo assim, ela já é algo concreto e, aparentemente, duradouro.