O bom filho à casa torna: Ubirany fala sobre a volta do Fundo de Quintal ao Cacique de Ramos

“Seja sambista também”, resume Ubirany, sobre a carreira do Fundo de Quintal
“Seja sambista também”, resume Ubirany, sobre a carreira do Fundo de Quintal

A receita é simples: após uma “pelada”, cerveja gelada e um bom samba! Assim eram os pagodes realizados no Cacique de Ramos em meados da década de 1970 e foi naquele cenário que o Fundo de Quintal começou a tomar forma, quando passou a ocupar a Tamarineira de maneira despretensiosa para mostrar a música que faziam após partidas de futebol entre amigos todas as quartas-feiras.

Somando 40 anos de estrada, o grupo segue desfrutando de grande prestígio e popularidade: é símbolo e fonte inesgotável de inspiração para todas as gerações de compositores e entusiastas do gênero. Atualmente, o time é formado por Bira no pandeiro, Sereno no tantã, Ubirany no repique, Mário Sérgio no cavaquinho, Ronaldinho no banjo e Ademir Batera na bateria.

“As nossas composições sobreviveram o passar dos anos” diz Ubirany
“As nossas composições sobreviveram o passar dos anos” diz Ubirany

Chegada a hora de relembrar os tempos históricos do samba, o veterano Ubirany fala em entrevista exclusiva ao Samba em Rede sobre o novo projeto que promove o retorno do Fundo de Quintal à quadra do Cacique, tradicionalmente às quartas-feiras. A ideia é trazer convidados que muito contribuíram para a formação e trajetória do grupo a cada edição.

A primeira roda e contou com o mestre Zeca Pagodinho. “Ele sempre foi um frequentador assíduo das nossas rodas de quarta-feira, então foi uma das pessoas que muito colaborou, sempre incentivou o nosso samba”, diz Ubirany a respeito do convidado de honra. E na quarta-feira, dia 13 de abril, é a vez da madrinha Beth Carvalho participar da grande festa.

É importante ressaltar que estamos falando de um dos grandes expoentes do gênero, cujo trabalho é atemporal e não se pode mensurar. Da mesma maneira como “Boca sem Dente”, de 1988, permanece um clássico das rodas, o grupo foi agraciado pelo Grammy Latino na categoria “Melhor álbum de Samba” com o disco Só Felicidade em 2015. “A gente vai chegar aos cem anos e vai estar todo mundo no palco cantando, sambando um miudinho”, brinca Ubirany.

O sambista – criador do repique de mão – ainda relembra o início de carreira, a relação com a madrinha Beth Carvalho, fala sobre a nova geração do samba e elege Neocí Dias como uma figura especial que remete ao momento inaugural da roda.

Confira a entrevista na íntegra:

Vocês lançaram o projeto “Fundo de Quintal no Cacique de Ramos” em março para celebrar a vida profissional do grupo, desde as premissas da carreira na década de 1970 até os dias atuais. Como surgiu e ideia? E por que às quartas-feiras?

Eu diria que foi o retorno de uma ideia, o retorno de uma brincadeira que virou coisa séria. Quando o grupo volta a se apresentar às quartas-feiras significa um retorno; o grupo sempre esteve presente, mas não fazendo aquela sua roda de samba dentro do Cacique e eis que agora nós voltamos pra não perder a tradição, com o Zeca Pagodinho.

Ele sempre foi um frequentador assíduo das nossas rodas de quarta-feira, então foi uma das pessoas que muito colaborou, sempre incentivou o nosso samba, então nada melhor que fazer a primeira com o Zeca Pagodinho. Nós gravamos o nosso primeiro disco em 1980 e o Zeca em 1983, ou seja, é também um fruto do convívio do ambiente lá do Cacique de Ramos.

Com a Beth não vai ser diferente. A Beth é a nossa madrinha, nossa grande incentivadora. Foi a pessoa que nos colocou na atividade profissional como músicos, quando em 1978 nos chamou para fazer o disco “Pé no Chão”; a música de sucesso deste álbum (“Vou Festejar”) era uma música de um componente do Fundo (Jorge Aragão e Neocí Dias compuseram a música com Dida). Em 1979 gravamos com ela outra vez e a música de sucesso foi “Coisinha do Pai”, também uma música de sucesso de compositores do Fundo de Quintal (composto por Almir Guineto, Jorge Aragão e Luiz Carlos). Portanto, ela faz parte – com todo o mérito! – da nossa história.

A primeira edição contou com a participação do mestre Zeca Pagodinho. Como foi reviver o passado dessa forma, em cima do palco?

Foi bom demais, uma sensação de estar voltando para aquilo que nasceu de nós. Foi uma coisa que a gente percebia no semblante das pessoas, no olhar, a alegria; foi contagiante. Eu fiquei impressionado, as pessoas estavam sambando, caindo no samba mesmo; foi um momento muito bonito.

O repertório do show conta com sucessos que marcaram época, tanto do Fundo e quanto do artista convidado. Como foi selecionar, entre centenas de canções que vocês já  interpretaram nos últimos 40 anos, aquelas mais representativas da trajetória do grupo?

Esse é o grande problema (risos)! Nós temos uma história musical longa demais, mas procuramos sempre selecionar músicas que contam a nossa história.

As nossas composições sobreviveram o passar dos anos. Não são descartáveis, do tipo que fazem sucesso por um ou dois anos e depois você nunca mais escuta aquela música. O Fundo de Quintal tem isso e o Zeca, diga-se de passagem, não faz por menos.

O show também conta com representantes da nova geração, fazendo a abertura, como o Quinteto Cacique, Juninho Thybau, Mosquito e Gabrielzinho de Irajá. Qual é o seu parecer sobre o atual cenário da música brasileira?

É uma garotada que está chegando com bastante propriedade. A gente só pede para que eles tomem cuidado. Tem uma música do Paulinho da Viola que diz ‘Tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim’, e a gente só pede isso. Inovar é natural, mas sem perder a tradição, sem esquecer das dádivas deixadas pelos nossos mestres.

A próxima edição conta com a presença da madrinha Beth Carvalho. Um dos marcos da carreira do grupo foi a participação no seu disco “Pé no chão”, produzido por Rildo Hora em 1978. Você imaginava o que seria consolidado após este encontro?

Não tínhamos ideia. O que a gente sabia é que nós fazíamos uma coisa que marcou para a Beth. Uma vez ela foi assistir o nosso pagodinho a convite do Alci Portela. Ele a levou no Cacique e lá ela encontrou um lugar onde sempre escutava sambas novos, pessoas levando suas composições.

E os instrumentos de percussão não eram aqueles característicos do samba da época, de repente apareceu tantã, banjo, repique de mão – instrumento que eu criei -, além de instrumentos de música country. E ela gostou daquele balanço.

Não tinha essa coisa de microfone, ‘boca de ferro’. Nada de baqueta, os instrumentos de percussão tocados com os dedos. A Beth ficou muito empolgada com isso, e achamos que essa questão foi fundamental para que esse primeiro trabalho acontecesse. Ela viu aquilo e falou: ‘Espera aí, quero levar isso pro meu disco’.

E, a partir daí, isento de vaidade, tenho o prazer de dizer que a rapaziada que é entrevistada por aí, sempre diz que a grande referência é o Fundo de Quintal.

Em entrevista com a Beth, ela me contou que foram vocês que a chamaram de madrinha pela primeira vez. Como surgiu esse apelido? Você consegue recordar este momento?

Foi logo de cara, no momento que ela chega e pega essa turma – que tava ali brincando – e transforma essa brincadeira em coisa séria; ela nos levou para a casa dela, para um estúdio para fazer um bate-bola na escolha das músicas. E ela ficou maravilhada! Então a gente diz que a madrinha foi um apelido que veio logo de início. Ela foi, definitivamente, a pessoa que abriu os nossos caminhos.

Da Tamarineira muitos foram os frutos que figuram como expoentes do samba. Dentre tantos nomes que já cruzaram o seu caminho ao longo desses anos, de quem você mais sente falta dos que já se foram?

Uma pessoa que fez parte da nossa primeira formação, Neocí Dias de Andrade. Ele fez parte da nossa primeira formação, foi um dos caras que participou dessas rodas iniciais que a gente brincava. Neocí é uma das figuras que a gente nunca esquece e guarda com o maior carinho.

Recentemente vocês foram agraciados pelo Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Samba”, com o disco “Só Felicidade”. O que esse momento representou?

Toda e qualquer premiação tem valor, mas este é um prêmio internacional e foi muito importante. Engraçado que a imprensa não fala muito não, deve ser porque foi o samba que ganhou.

Como é que vocês conseguiram e vêm conseguindo atravessar esses 40 anos de carreira fazendo o que gostas e cantando o que se quer?

Olha, a melhor coisa do mundo é isso que você falou, fazer o que gosta e cantar o que se quer. Nós sempre nos preocupamos. Nosso repertório quem faz somos nós, claro que com a participação do produtor. E esses últimos dois anos com a participação do nosso empresário – que acompanha muito essa linha do samba -: os seis votam e o sétimo voto é do produtor.

Procuramos sempre escolher o melhor e graças a Deus temos vários discos de ouro e de platina. Não tem mais nenhum garotinho no grupo, todo mundo já está cascudo. E ficamos muito felizes por estarmos vivendo e sobrevivendo com a maior dignidade no meio do samba, no meio dos artistas, no meio da música popular brasileira. A gente vai chegar aos cem anos e vai estar todo mundo no palco cantando, sambando um miudinho!

Você consegue resumir esses 40 anos em alguma frase ou palavra?

Vou usar o título de uma música nossa: ‘Seja sambista também’.