Com quantas letras se faz um cruzeiro literário na Amazônia?

Esqueça tudo o que você já ouviu falar (ou viu) sobre cruzeiros.

Nesta viagem, não há festas do comandante ao som de música de gosto duvidoso. Muito menos shows exagerados com coreografia manjada.

No lugar de mulheres envoltas em vestidos dourados que parecem embrulhar trufas recheadas, passageiras arrastam calçados confortáveis e leem livros na beira da piscina.

O Iberostar Grand Amazon, durante o projeto ‘Navegar é Preciso’

Troque os milhares de turistas que congestionam desembarques em portos mediterrâneos por algumas poucas dezenas de viajantes que não se apressam para a saída seguinte.

No lugar de descidas alucinadas para visitas apressadas a lojinhas de (inúteis) lembrancinhas turísticas, pequenas expedições na floresta, visita a comunidades ribeirinhas e palestras breves em ONGs.

Manaus segue previsível do lado de fora: quente (para não dizer infernal), caótica e pouco convidativa.

Mas sobre as águas quase paralisadas do rio Negro, uma embarcação simples de madeira aguarda o aviso da tripulação para uma das experiências mais inusitadas nas distantes (e ainda desconhecidas) terras amazônicas: um cruzeiro literário onde escritores, músicos e um pequeno grupo de passageiros dividirão o mesmo espaço nos cinco dias seguintes.

“O barco agrega, não dispersa”, já diriam os organizadores da viagem.

Criado pela Livraria da Vila e pela agência Auroraeco, o projeto ‘Navegar é Preciso’ reuniu no Amazonas, pelo quarto ano consecutivo, escritores e cantores em encontros literários diários, apresentações musicais e saídas para exploração da região.

E assim, de história em história, o Iberostar Grand Amazon riscou sem pressa as águas escuras do rio Negro em direção ao arquipélago das Anavilhanas, em uma viagem lenta (e intensa) que, por vezes, assumia status de expedição, ainda que sem relatos de aventuras na floresta como grupos perdidos ou ataques de animais. Essas ficaram mesmo para a literatura.

Da esq. para a dir., o búlgaro Ilko MInev, a cantora Marina de la Riva, o chileno Alejandro Zambra, e os brasileiros Marcelino Freire e Humberto Werneck

A 4ª edição do projeto contou com a presença dos escritores Humberto Werneck, Marcelino Freire, Alejandro Zambra e Ilko Minev. A cantora Marina de la Riva e o músico Cleber Silveira preencheram as noites escuras e monótonas da Amazônia com apresentações breves de um repertório com músicas de Dorival Caymmi, seguidas de rodas informais no deck da piscina, na cobertura do navio.

A rotina a bordo (se é que é possível usar tal adjetivo maquinal para descrever uma travessia como essa) se resumia a dois desembarques diários acompanhados de mesas redondas protagonizadas por dois escritores. Pela manhã e pela tarde.

Mas as imagens que se abriam diante dos olhos do lado de fora foram os melhores prólogos, desenlaces e epílogos que inspiraram a tripulação temporária nos encontros seguintes.

Preparação de tapioca em Acajatuba, comunidade ribeirinha a 60 km de Manaus

Desembarque em comunidades afastadas às margens do rio Negro; caminhadas em trilhas curtas pelo interior da mais cobiçada floresta tropical do planeta; e observação de animais amazônicos como botos (rosados, para elevar o tom literário da viagem).

No entanto, o destaque de toda a viagem foram as navegações lentas por igapós, as veias escondidas que dão acesso a áreas, naturalmente, inundadas, da região.

Trilha na região de Jaraqui

Igapós são trechos de florestas alagadas pela temporada de chuvas na Amazônia, mas bem que poderiam ser descritas também como caminhos estreitos que levam a cenários de visual impressionista.

Observação de botos em Nova Airão

É ali, entre explicações livrescas de guias que destoam daquela calmaria, que o silêncio é a melhor história a ser contada, onde as águas confundem e se fundem nas copas das árvores.

De volta a bordo, os passageiros se encontravam no salão principal do navio para encontros diários entre os escritores, acompanhados de conversas informais com leitores, pilhas de livros recém-lançados à espera de autógrafos rabiscados na primeira página e histórias de bastidores protagonizadas por nomes como Drummond, Saramago e Clarice Lispector.

Macacos na região de Ariaú, na Amazônia

E como se já não sobrasse poesia, a cantora Marina de la Riva fechou uma das noites com seu bem cuidado repertório de músicas assinadas por Dorival Caymmi, em uma homenagem ao centenário de nascimento desse compositor baiano.

“É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar”, entoaria Caymmi. Mas por ali, entre florestas escondidas e igapós, o rio é protagonista.

Marina de la Riva interpreta Caymmi ao lado do músico Cleber Silveira

Por Eduardo Vessoni, do blog Viagem em Pauta