Violência doméstica: 'iniciativa privada deve investir em serviços de combate'

Iniciativa privada deve investir em serviços de combate

Heloisa Aun

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que uma em cada três mulheres em todo o mundo já sofreu algum tipo de violência física ou sexual. Apesar do problema ser cada vez mais discutido, só será possível enfrentá-lo com a articulação de todas as esferas da sociedade: cidadãos, poder público, organizações e iniciativa privada.

Engana-se quem pensa que essa questão não afeta também as empresas: segundo um estudo feito em 2017 pela Universidade Federal do Cea​rá (UFC), em parceria com o Instituto Maria da Penha (IMP), no Nordeste, as trabalhadoras que sofreram violência doméstica faltaram ao trabalho, em média, 18 dias naquele ano. A pesquisa também estimou que as abstenções geram a perda de 64,4 milhões de reais para as companhias de capitais nordestinas.

A necessidade das marcas atuarem no enfrentamento da violência contra a mulher norteou o debate desta quarta-feira, 29, do Causando Encontros, projeto idealizado pela Catraca Livre e o Festival Path.

O bate-papo recebeu a presença de grandes especialistas no tema: a Gerente do Instituto Avon, Mafoane Odara, a Promotora de Justiça e fundadora do Instituto Justiça de Saia, Gabriela Manssur, e a responsável pelo Canal da Mulher no MagaLu, Tarsila Mendonça. A mediação ficou por conta da jornalista Alessandra Petraglia, da Catraca Livre.

No contexto da pandemia do novo coronavírus, com as medidas de isolamento social, o número de denúncias realizadas por mulheres aumentou, deixando evidente que fatores como a maior exposição e convivência dentro de casa, a insegurança econômica e a dificuldade de acesso a locais de apoio e serviços de saúde contribuíram para esse cenário.

De acordo com Mafoane, o atual panorama não traz nada de novo, mas amplifica as problemáticas que já existiam. “A violência contra as mulheres é uma pandemia silenciosa. Esse momento exige que as soluções sejam endereçadas de forma diferente. Nesta lógica, não basta que eu faça bem meu trabalho e você faça bem o seu. Juntas, precisamos fazer algo que sozinhas não conseguiríamos”, afirma.

Gabriela acrescenta: “A iniciativa privada vem com muita força, não só com sensibilização e apoio, mas com uma necessidade de investir nesses serviços paralelos, que podem ser parcerias público-privadas”. Ela ainda chama atenção para como os homens devem agir. “Vocês estão com a ‘caneta na mão’ e podem usar esse poder para atuar na causa”, sugere a promotora, que idealizou o Justiceiras, projeto de acolhimento e auxílio às vítimas durante a quarentena.

Mafoane Odara, Gabriela Manssur e Tarsila Mendonça falaram sobre o papel das empresas no combate à violência doméstica
Créditos: Divulgação / Causando Encontros
Mafoane Odara, Gabriela Manssur e Tarsila Mendonça falaram sobre o papel das empresas no combate à violência doméstica

Ação e envolvimento das empresas

Como pontua a Gerente do Instituto Avon, a cooperação entre os diferentes atores é essencial no enfrentamento da violência doméstica. “O primeiro fator é entender que a violência contra a mulher é da conta das empresas, elas querendo ou não”, ressalta.

De acordo com ela, nos últimos cinco anos houve uma mudança sobre conscientização dentro da iniciativa privada. “Com a Lei do Feminicídio [de 2015], você começa a ver algo que sempre existiu, mas ninguém nomeava: funcionárias morrerem”, diz. Essa responsabilidade surge, sobretudo, porque as mulheres estão dentro das corporações e os homens também, inclusive autores desse tipo de crime.

Tarsila relata que, no Magazine Luiza, a presidente Luiza Trajano explica que o tema é difícil, mas é preciso furar “as nuvens” e trazer isso à tona para que todos se engajem. “Nós pegamos para nós a responsabilidade, que também é do poder público. Com isso, a gente está cuidando das nossas famílias e colaboradores. Se a empresa não cumprir seu papel, não vamos conseguir vencer essa violência”, pontua.

O projeto interno do Magalu já atendeu 420 casos de violência desde 2017 e o esforço maior é para que a vítima não abandone o emprego. “Oferecemos transferência de cidade, auxílio-aluguel e financeiro para ela se estabilizar e continuar trabalhando, ajuda de creche para filhos… Manter a mulher empregada é fundamental para a independência financeira, o que faz com que ela não retorne para o agressor”, completa. A empresa também faz parte do programa Tem Saída, que insere as vítimas no mercado de trabalho.

Já a Promotora de Justiça, em seus mais de 20 anos de trabalho contra a violência de gênero, evidencia que no passado havia uma dificuldade de sensibilizar as empresas com a temática. Manssur se aproximou delas aos poucos, batendo de porta em porta.

“Em um primeiro momento, meu objetivo era que as corporações abrissem as portas para as mulheres que estavam afastadas do mercado de trabalho devido a agressões”, lembra. Na mesma época, buscava entender as demandas das próprias funcionárias das companhias, que poderiam estar vivendo situações de agressão.

“Quando as mulheres voltavam na Promotoria, não para registrar boletim de ocorrência, mas sim para me mostrar a carteira assinada, eu percebi que elas resgatavam a autoestima e uma maior possibilidade de escolha na vida: poder romper o ciclo de violência”, continua a promotora.

Depois, Gabriela começou a se aproximar das empresas de forma institucional. Com as mulheres dentro desses locais, iniciou uma atuação sobre a necessidade da sensibilização interna entre os colaboradores. “Quando a demanda apareceu, a iniciativa privada foi obrigada a buscar mecanismos e criar projetos consistentes para apoiar essas vítimas. As mãos dadas do poder público, da iniciativa privada e da sociedade civil.”

Meta a colher!

A Avon e o Magazine Luiza são algumas das empresas no Brasil referências em ações de combate à violência doméstica. A partir de sua experiência no Canal da Mulher, Tarsila entende que a atitude de “meter a colher” nesse enfrentamento traz muitos resultados positivos.

“Durante o confinamento, diminuiu muito a quantidade de chamadas de casos no sistema, pois as mulheres estão em casa e não podem buscar ajuda. Antes, nossos líderes, gerentes e colegas de trabalho eram os principais apoiadores para a denúncia. Eles percebiam quando alguma colaboradora faltava, estava triste de forma recorrente, entre outros indícios”, exemplifica.

Para Mafoane, todo momento de crise exige intervenção de crise, e ela é baseada em uma colaboração. Segundo ela, antes da pandemia chegar ao Brasil, nós já tínhamos noção de coisas que se reproduziam como padrão ainda no início em outros países, no caso da violência de gênero: as denúncias caíram, as vítimas tinham dificuldades em pedir auxílio e casos de feminicídio subiram.

Logo que a situação passou a impactar o país, o Instituto Avon articulou diversas frentes de atuação, por meio da plataforma “Isoladas Sim, Sozinhas Não”, com comunicação, programa de ação (“Você não está sozinha”) e ainda advocacy, junto aos governos.

A gerente afirma que logo no começo o Instituto Avon percebeu que muitas mulheres não conseguiam pedir ajuda porque estavam convivendo ao lado do agressor. Pensando nisso, criou uma robô no WhatsApp, construída por meio de um formulário, com o qual a instituição conseguiu detectar o nível de risco de cada usuária: baixo, médio ou alto. “Tivemos mais de 2.500 acessos, no Brasil inteiro, e verificamos que a maior parte delas estava correndo risco.”

Então, o Instituto fez uma parceria com o Ligue 180 para endereçar outras formas de apoio, como promover as necessidades básicas, emocionais e a autorrealização, com a qual a vítima poderá sair do ciclo de violência. Nesse percurso, o grupo percebeu que a violência acontece entre 20h às 3h da madrugada. “Fizemos uma parceria com a Uber para oferecer vouchers e ajudar a mulher a sair de casa. Também conseguimos doações de cestas básicas, em parceria com o Grupo Pão de Açúcar, e ainda quartos de hotéis para a vítima permanecer, com a Accor”, reitera.

Para auxiliá-las na denúncia, a instituição mapeou com a ONG Mapa do Acolhimento sobre o funcionamento das delegacias do país. A princípio, o projeto todo de enfrentamento da violência doméstica estava programado para durar três ou quatro meses, mas o período de emergência vai se estender até o fim do ano. “Isso significa que vai haver um sucateamento dos serviços públicos. O que a gente fez? Lançamos um fundo para continuar a oferecer apoio neste momento”, finaliza Mafoane.

Causando Encontros

O combate à violência doméstica foi o tema do penúltimo evento do projeto Causando Encontros, promovido pela Catraca Livre e o Festival Path para conectar líderes de empresas a protagonistas de lutas por diferentes causas da sociedade. Nos encontros anteriores, as conversas tiveram como foco o racismo estrutural, a preservação ambiental e a geração de renda.

Os eventos são voltados para profissionais e estudantes das áreas de comunicação, marketing, sustentabilidade, responsabilidade social corporativa e recursos humanos. Saiba mais na página especial do projeto e se inscreva na 5ª edição do Causando Encontros, na qual vamos falar sobre saúde mental.

Confira abaixo o que rolou nos outros encontros: