13 anos da Lei Maria da Penha: entenda quando ela pode ser usada

Para a aplicação da lei, é necessário que a violência tenha ocorrido em um contexto de violência doméstica, familiar ou em uma relação íntima de afeto

Por: Pamela Michelena Marchi Gherini, da Rede Feminista de Juristas
A lei homenageia Maria da Penha, que sofreu duas tentativas de homicídio por parte do marido

Este ano, a Lei Maria da Penha comemora 13 anos de existência. O desejo de todos era que, com o passar do tempo, ela se tornasse cada vez menos necessária pela diminuição nos casos de violência doméstica registrados no Brasil. Contudo, isso não é o que está acontecendo.

Os registros de violência contra mulher vêm aumentando significativamente, o que pode ser consequência de um crescimento no número total de casos como também um aumento no número de notificações perante às autoridades, em razão de uma maior conscientização sobre o tema. De um jeito ou de outro, a importância dessa norma continua imensa, e é sobre ela que vamos falar neste texto.

A história da Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha surgiu no ordenamento jurídico brasileiro como consequência da condenação do país no sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Em outras palavras, o Brasil foi considerado omisso no caso da Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de duas tentativas de homicídio pelo seu marido, o que a deixou paraplégica.

Foram 20 anos de luta para que o agressor fosse punido, e isso só aconteceu quando o seu caso foi processado a nível internacional, já que as advogadas dela exauriram todas as possibilidades no judiciário brasileiro sem que medidas fossem tomadas para a responsabilização do agressor. Por essa razão, o Brasil foi condenado a criar uma política pública de atendimento a casos como o da Maria da Penha, evitando que mulheres como ela ficassem desamparadas e seus agressores impunes. Se hoje ainda enfrentamos dificuldades, imagina antes da lei existir?

Ela estabelece estratégias interdisciplinares, comprovando que soluções puramente penais não fazem parte do modelo inicialmente pensado quando esta política pública foi desenhada. O grupo de especialistas que elaborou a lei percebeu que o mero encarceramento de agressores não solucionaria o problema. Se vivemos em uma sociedade que ensina meninos a serem violentos e meninas a serem tolerantes com essa violência, apenas prender pessoas não mudará a lógica de funcionamento deste ciclo. Continuaremos produzindo agressores e a violência nunca será superada.

Justamente por prever atendimento integral à vítima e determinar a criação de oportunidades de conscientização é que a lei se tornou internacionalmente reconhecida e celebrada. Isso sugere que o caminho por ela adotado deva ser utilizado como base para atuar nos outros tipos de violência de gênero que não são abarcados por esta lei, conforme explicaremos adiante.

A violência

A violência que é abarcada pela Lei Maria da Penha se refere a um escopo específico dentro dos diversos tipos de violência de gênero existentes. É por essa razão que nem toda violência cometida contra a mulher é protegida dentro desta lei, havendo diversas normas diferentes para cuidar de cada caso, de acordo com o seu contexto.

Portanto, violência contra a mulher é uma espécie de violência de gênero e não seu sinônimo. Existem diversas formas que a violência de gênero pode ocorrer: violência familiar, violência doméstica, violência em relações íntimas de afeto, assédio moral e sexual no trabalho, transfobia, homofobia e assim por diante.

O que é comum em todas elas é a origem social desta violência, podendo ocorrer em diversos contextos independente do gênero da vítima ou do agressor, apesar de mulheres e outros grupos, como a população LGBTI+, costumarem sofrer mais deste problema. A imposição de padrões estereotipados para os gêneros também aprofunda a situação, como justificar e reforçar a violência masculina como algo natural e a passividade e submissão das mulheres como dever.

É importante pontuar que a violência de gênero nem sempre é perpetrada por homens, uma vez que mulheres também podem ser instrumentalizadas a fazerem funcionar o sistema que as oprime. Infelizmente, é muito comum escutarmos frases como “precisamos de uma Lei Mario do Penho”. Colocações como essa vêm de um lugar de ignorância, já que o ordenamento jurídico possui leis para lidar com violências cometidas contra homens, inclusive, em âmbito doméstico (como o Código Penal).

O fato de existir uma lei para lidar com a violência sofrida especificamente por mulheres não significa que haja desamparo do ordenamento com a população masculina.

Os crimes cometidos por homens contra mulheres não são os mesmos que os cometidos por mulheres contra homens. O número de mulheres que morrem nas mãos de companheiros, ex-companheiros, familiares etc., é muito maior do que homens que morrem nessas circunstâncias (ou seja, assassinados por mulheres próximas). Nem mesmo os locais das mortes é semelhante, já que a maior parte dos homens morre nas ruas, como em acidente de trânsito, violência urbana, dentre outros, enquanto as mulheres costumam morrer e ser agredidas dentro de casa.

É por essa razão que a Lei Maria da Penha foi criada. Justamente para lidar com os numerosos casos de violência que ocorrem no âmbito doméstico, familiar e em relações íntimas de afeto, que são os locais ou tipos de relação que concentram o maior número de homicídios/feminicídios e outros tipos de violência contra a população feminina no Brasil.

A Lei Maria da Penha foi criada há 13 anos para punir violência doméstica
Créditos: Tony Winston/Agência Brasília
A Lei Maria da Penha foi criada há 13 anos para punir violência doméstica

Quando se aplica a Lei Maria da Penha?

Para que a lei seja aplicada é necessário que a vítima seja mulher. Isso, naturalmente, abrange mulheres travestis e transexuais, uma vez que ser mulher é uma identidade e independe do sexo atribuído no momento do nascimento. Outro fator relevante, e que poucos sabem, é que o agressor não precisa ser um homem para que a Lei Maria da Penha possa ser aplicada. Isso significa, por exemplo, que uma agressão de uma mãe contra a filha ou de uma namorada contra a outra (em uma relação homoafetiva), haveria a incidência da lei.

Um outro elemento essencial para a aplicação da lei é o contexto em que ela ocorre e a relação existente entre vítima e agressor(a).

Por isso, para a sua aplicação é necessário que a violência tenha ocorrido em um contexto de violência doméstica, familiar ou em uma relação íntima de afeto.

A violência de um desconhecido contra uma mulher no transporte público ou do chefe com uma funcionária serão tuteladas por outras leis do ordenamento de acordo com o ocorrido, mas não haverá a aplicação da Lei Maria da Penha.

A relação íntima de afeto engloba “ficantes”, namorados, maridos, companheiros etc, mesmo que o relacionamento já tenha terminado. A lei reconhece 5 tipos de violência nestes contextos: sexual, psicológica, moral, física e patrimonial.

Abaixo, estão alguns exemplos comuns de cada tipo:

Violência Sexual:

Estupro ou Estupro de Vulnerável (aquele cometido contra criança, adolescente, pessoa com deficiência etc.), lembrando que não precisa haver a penetração para que sejam configurados. Vale pontuar que na maioria dos crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes os agressores são próximos da vítima. Além disso, muitos estupros ocorrem dentro de relacionamentos, como de um namorado contra a namorada ou marido contra a esposa. Ter um relacionamento não impõe à mulher a obrigação de ter relações sexuais.

Importunação Sexual ocorrida dentro do ambiente doméstico, familiar ou em relações íntimas de afeto. Explicamos um pouco deste crime no artigo “Carnaval deste ano será o 1º com o crime de importunação sexual”. Apesar de tratarmos naquele artigo a importunação no contexto do Carnaval, não é necessário que o agressor seja um desconhecido para ele ser configurado.

Violência Psicológica:

Gaslighting, que segundo Fernanda Vicente no Ondda, é: “uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade. (…) É uma forma muito eficaz de abuso emocional que faz com que a vítima questione seus próprios sentimentos, instintos e sanidade, o que dá ao parceiro abusivo muito poder.”

Stalking que se caracteriza quando o agressor persegue de forma contínua a vítima, muitas vezes vigiando, seguindo, importunando, invadindo a privacidade, interrompendo a tranquilidade, insistindo em contato mesmo mediante negativa, dentre outros. Vale mencionar que existem projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional para criminalizar a conduta. Mesmo assim, já existem processos buscando a responsabilização de agressores por stalking.

Violência Moral:

Expor a vítima publicamente, seja verbalmente ou fazendo uso de redes sociais, divulgando a intimidade dela ou até inventando mentiras para afetar a sua reputação. Criar conflitos em público, xingando a vítima visando humilhá-la e desestimulá-la a sair de casa, afastando-a da família, dentre outros atos.

Violência Física:

Tapas, empurrões, apertos, socos, espancamento, chacoalhadas, chutes, beliscões, etc.

Violência Patrimonial:

Confiscar o dinheiro da vítima, privá-la de bens básicos, fazer a vítima passar necessidade, impedir o acesso dela ao patrimônio do casal, se desfazer/quebrar/esconder bens da vítima, etc.

Alterações à Lei Maria da Penha

Desde sua publicação em 2006, a lei já passou por diversas alterações em sua redação. Apesar da população em geral ver com bons olhos a tramitação e aprovação de novas leis, é importante lembrar que não é porque uma lei foi passada que haverá resultados positivos ou que problemas necessariamente serão solucionados. Inclusive, é muito possível que alterações feitas a “toque de caixa” ou visando interesses específicos possam promover retrocessos.

O que tem sido observado é um número elevado de alterações legislativas sem que especialistas sejam devidamente consultados.

Apenas quem lida com a rotina de vítimas e elas próprias poderão relatar os verdadeiros problemas e gargalos dessa política pública. Por isso, é importante que o processo legislativo chame a sociedade civil para pensar em conjunto possíveis soluções para os problemas ainda existentes. Além disso, muitas estratégias pensadas no plano das ideias são de difícil ou impossível aplicação prática, portanto, não é viável fazer alterações em massa sem discussões com quem vivencia a aplicação rotineira da norma.

A Lei Maria da Penha foi pensada como uma política pública integrada e interdisciplinar. Ficar “remendando” a lei sem respeitar a sua lógica de construção pode criar problemas que não existiam, principalmente se as modificações não forem pensadas dentro do contexto que a lei se aplica.

Abaixo, está a lista de leis que alteraram a Lei Maria da Penha (LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006) nos últimos 13 anos, em ordem cronológica de publicação:

  • LEI Nº 13.505, DE 8 DE NOVEMBRO DE 2017 – Dispõe sobre o direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar de ter atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente, por servidores do sexo feminino.
  • LEI Nº 13.641, DE 3 DE ABRIL DE 2018 – Tipifica o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência;
  • LEI Nº 13.772, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2018 – Reconhece que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar na modalidade psicológica;
  • LEI Nº 13.827, DE 13 DE MAIO DE 2019 – Autoriza, em algumas hipóteses, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes;
  • LEI Nº 13.871, DE 17 DE SETEMBRO DE 2019 – Dispõe sobre a responsabilidade do agressor pelo ressarcimento dos custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica e familiar e aos dispositivos de segurança por elas utilizados;
  • LEI Nº 13.880, DE 8 DE OUTUBRO DE 2019 – Prevê a apreensão de arma de fogo sob posse de agressor em casos de violência doméstica;
  • LEI Nº 13.882, DE 8 DE OUTUBRO DE 2019 – Garante a matrícula dos dependentes da mulher vítima de violência doméstica e familiar em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio;
  • LEI Nº 13.894, DE 29 DE 0UTUBRO DE 2019 – Prevê a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável nos casos de violência.

Agora, nos deteremos a explicar a principal modificação feita à lei (na opinião de alguns especialistas). Importante lembrar que, em breve, publicaremos um artigo dedicado exclusivamente a apresentar e analisar todas as modificações feitas nos últimos 13 anos. Algumas dessas modificações causaram controvérsias, por isso, não é viável falar sobre isso de forma superficial.

Criação do Crime de Descumprimento de Medida Protetiva

As medidas protetivas de urgência estão previstas na Lei Maria da Penha e são usadas para proteger mulheres em situação de violência doméstica, familiar ou aquelas decorrentes de relações íntimas de afeto. Elas podem ser aplicadas de diversas formas, a mais comum é aquela que exige que o agressor mantenha determinada distância da vítima e/ou não tente contato com ela e seus dependentes.

É um instrumento importante para o combate e prevenção a novas violências, e pode ser solicitada diretamente na delegacia quando for feito o boletim de ocorrência. A medida protetiva em si não é uma medida penal e sim um procedimento cautelar. Isso significa que não precisa que tenha havido um crime para que ela seja solicitada e concedida.

Contudo, é comum que a medida protetiva seja usada depois que um crime já tenha sido cometido, como ameaça, lesão corporal, estupro, injúria, dentre outros. A Lei nº 13.641, de 3 de abril de 2018 alterou a Lei Maria da Penha incluindo o artigo 24-A que cria o crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência com pena de detenção, de 3 meses a 2 anos. Isso significa que o agressor que descumprir medida protetiva poderá ser preso e processado por este crime, além dos outros que possa já ter cometido contra a vítima.

Por um lado, temos o velho problema de lidar com violência de gênero usando o encarceramento como alternativa. Por outro, a maioria das mulheres vítimas de feminicídio já foi vítima de outras violências antes. Então, em alguns casos, a detenção do agressor pode prevenir que a vítima seja morta, além de pressionar o agressor para de fato cumprir a medida protetiva, já que antes, muitos desrespeitavam por não haver uma penalidade clara.

Próximos passos

Um dos principais desafios no combate à violência contra a mulher é o reconhecimento dessas violências.

Ainda vivemos em uma sociedade que naturaliza muitas violências como rotineiras, normais ou até parte inevitável das relações.

Isso não significa que qualquer desentendimento seja necessariamente violento, mas significa que o padrão de muitas relações é permeado por práticas agressivas o que faz com que mulheres demorem anos para compreenderem a situação abusiva e pedirem ajuda.

É ingenuidade acharmos que superaremos esse problema apenas com a criação de novos crimes. Muitas das condutas que já são criminalizadas continuam sendo praticadas, o que mostra que usar o Direito Penal como estratégia principal traz poucos resultados.

Enquanto criarmos meninos a não processarem seus sentimentos de forma saudável, estimularmos eles a se expressarem por meio da agressividade e determinarmos padrões nocivos de masculinidade, continuaremos desenvolvendo pessoas com referências distorcidas sobre como é aceitável tratar os outros.

Isso também se aplica à maneira que criamos meninas. Não podemos permitir que elas acreditem que “se um menino te trata mal é porque ele gosta de você”, “se ele tem comportamento irracional por ciúmes é sinal de amor”, “ser possessivo é normal de quem quer o outro só pra si”, “foi apenas um empurrão, ele não fez por mal”.

Quanto mais reafirmarmos essas narrativas mais difícil será das pessoas inseridas em dinâmicas abusivas compreenderem o problema, pois sempre se convencerão de que aquilo não é sério o suficiente para pedir ajuda ou terminar o relacionamento.

O primeiro passo para evitar violência e impunidade não é a prisão e sim a educação.

Homens que se desenvolvem de forma saudável, que não são expostos a padrões negativos de masculinidade dentro de casa e mulheres que não vivem em famílias que naturalizam as violências contra mães, avós, tias etc. conseguirão trilhar caminhos que não serão atravessados pela violência, não havendo necessidade do Direito Penal intervir na vida delas.

Se você presenciar violência contra a mulher não se omita, ligue para o 180 ou faça a denúncia para as autoridades. Omissão também mata.

Campanha #ElaNãoPediu

Nenhuma mulher “pede” para apanhar. A culpa nunca é da vítima. A campanha #ElaNãoPediu, da Catraca Livre, tem como objetivo fortalecer o enfrentamento da violência doméstica no Brasil, por meio de conteúdos e também ao facilitar o acesso à rede de apoio existente, potencializando iniciativas reconhecidas. Conheça a nossa plataforma exclusiva.