Antropofagia paulistana

Por: Redação

Próxima à fronteira com o Acre, a cidade de Envira, no Amazonas, tem 17 mil habitantes, mas quatro deles, quase todos ainda adolescentes, decidiram se mudar para São Paulo por causa do rock. Para dar uma medida de isolamento, a cidade, localizada a 1.200 km de Manaus, só saiu do anonimato nacional na semana passada, devido a uma acusação de antropofagia -cinco índios são suspeitos de devorar um jovem.

Com suas guitarras, eles se sentiam culturalmente isolados na selva e, muitas vezes, tinham de viajar até dois dias de barco para chegar a um lugar onde alguém se dispusesse a pagar pelo show. A volta, às vezes, demorava mais tempo por causa da correnteza. Nesse trajeto, gastavam quase todo o cachê. Os quatro jovens fazem parte das dezenas de milhares de migrantes que deixam tudo para trás e encaram São Paulo como sua redenção cultural.

Integrantes da banda Jovens Delta, Joab Russo, Junior Picasso, B2 e Edson Delta montaram uma estratégia de marketing para arrecadar fundos e bancar a viagem até São Paulo.Pensaram inicialmente em sair catando latinhas para vender a empresas de reciclagem. Desistiram. Cada tonelada arrecadaria, no máximo, R$ 500 -latinhas não são exatamente o material mais abundante em Envira. “Nunca iríamos conseguir dinheiro”, resignou-se Junior.

Saíram então pelas cidades vizinhas, oferecendo aulas particulares em diversos instrumentos, com o seguinte desafio: se, em determinado prazo, os alunos não aprendessem a tocar nada, teriam o dinheiro de volta. O lance de marketing deu certo. “Chegamos até a pensar em comprar uma Kombi para fazer a viagem. Seria ao mesmo tempo transporte e moradia.”

Mudaram de ideia. No final do ano passado, embarcaram num avião até Feijó (AC). Demorou mais nove horas de pau-de-arara até Rio Branco, de onde pegaram um ônibus até São Paulo -ao todo, seis dias de viagem.
Estavam todos agarrados às suas malas, temendo um assalto. Andavam formando uma rodinha, na qual os pertences ficavam do lado de dentro, como se erguessem um muro. Assustados, conheceram o metrô que os levaria até o Ipiranga, onde mora uma amiga.

divulgação
Integrantes da Jovens Delta tentam implacar carreira em SP

Logo descobririam que existem ruas repletas de lojas de instrumentos -o que, para eles, é muito mais exótico do que a fauna e a flora amazônicas. Descobriram também um lugar em que pudessem ouvir música sem pagar -e assim conheceram o Studio SP, na rua Augusta, que vem recebendo jovens como os da banda Jovens Delta, atraídos pela antropofagia paulistana.

Na semana passada, um dos sócios do Studio SP, o músico Guga Stroeter, que desenvolve projetos de apoio a novos talentos, se dispôs a ouvir o rock deles e gostou. Tanto gostou que decidiu gravá-los profissionalmente. “Tudo parece meio irreal”, espanta-se Junior. Tão irreal como uma banda de rock na selva.

Ouça as músicas da banda