Como a feminilidade é aprendida na infância? Veja o que descobriu pesquisa feita com crianças de cinco anos

“A noção de ser ‘bonita’ não é algo vago, as crianças já percebem, aos cinco anos, que há um padrão específico de beleza que é mais valorizado”

foto: Laura Wake

Para investigar a forma como a feminilidade é aprendida na infância, quais são as fronteiras entre a masculinidade e a feminilidade, e como são postas pelas crianças no dia-a-dia, Michele Escoura, autora do livro “Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola“, que será lançado neste mês, e pesquisadora e antropóloga desenvolveu uma pesquisa com 200 crianças de cinco anos.

No estudo, após assistir aos filmes “Cinderela” e “Mulan”, pediu às crianças que desenhassem e comentassem as cenas que mais tinham gostado. Além disso, também observou aspectos como as brincadeiras, produtos que consumiam e quais personagens imitavam.

Confira a seguir uma entrevista com a pesquisadora:

Catraquinha: Quais foram as principais descobertas da sua pesquisa sobre a influência das princesas na vida das meninas?

Michele Escoura: Durante a pesquisa, apareceu muito o modo como as crianças entendiam os filmes (“Cinderela’ e ‘Mulan”) e, principalmente, como elas atribuíam os critérios para ser uma princesa. Depois que assistiram Mulan em uma das escolas, uma menina disse que ela não era princesa porque era “feia”. Isso me intrigou. Comecei então a pedir para que as crianças me explicassem o que era ser uma princesa.

Quando elas assistem os filmes, elas compreendem que a ideia de princesa está relacionada a três necessidades: ser bonita, ter coisas e ter um príncipe

Só que essa noção de ser “bonita” não é algo vago, as crianças já percebem, aos cinco anos, que há um padrão específico de beleza que é mais valorizado. Percebi isso quando uma menina, que fazia o desenho da Mulan disse que a personagem era “linda”, mas ignorou o fato da protagonista ser uma garota chinesa e a pintou com os cabelos amarelos, loiros.

Outro dia marcante foi quando na observação rotineira da escola vi duas meninas negras, de uma escola de periferia, brincando de cabeleireiras. Uma delas fingia alisar e clarear o cabelo da outra: “tamo fazendo chapinha e luzes tia, vai ficar lindo!”, me disse sorridente.

A Disney, talvez, seja uma das primeiras “escolas” que encontramos para aprender o que a sociedade enxerga como a mulher ideal

Agora a pergunta: foi a Disney que ensinou a elas que um cabelo só é “lindo” se for loiro e liso? Foi também. A sociedade elegeu esse formato de cabelo como belo, nos fez acreditar que são os corpos das mulheres lá da Europa que são os mais bonitos e desejáveis. O que a Disney fez foi traduzir esse ideal de beleza para as crianças. Se pararmos em uma banca de revistas e vermos qualquer revista feminina ali, certamente vamos encontrar manchetes “ensinando” as mulheres a se encaixarem nesse padrão.

De que maneira o referencial de feminilidade transmitido por personagens princesas afeta meninos e meninas na infância?

 Não acredito que haja uma conspiração consciente do tipo: “vamos fazer as meninas acreditarem que só serão felizes se forem brancas, jovens, magras e tiverem um marido”. O que os filmes da Disney fazem é traduzir um ideal sobre o que é o feminino mais valorizado pela sociedade para as crianças. A sociedade é quem criou esse padrão de feminilidade esperada, a Disney precisa que as pessoas desta mesma sociedade gostem de seus filmes e por isso usa desse ideal. É intencional no sentido de que eles sabem quais são os valores da sociedade e se utilizam deles para conseguir cada vez mais audiência e, em consequência, uma maior arrecadação de bilheteria. ​

Ao ​reproduzirem esse ideal, de alguma forma ela está o legitimando, e mostrando para as crianças do gênero feminino que é assim que elas devem ser e para as crianças do gênero masculino que é assim que deve ser a mulher ideal para eles.

Como o consumo e a publicidade infantil desses produtos afetam as crianças?

O ideal de consumo é construído nas crianças da mesma forma como com qualquer adulto de nossa sociedade. Vivemos em uma sociedade que está o tempo todo nos dizendo que para você ser, precisa ter. Nossa identidade é construída e comunicada aos outros pelos objetos que nos rodeiam. Uma marca como as Princesas Disney apenas se exerce com um recorte etário e de gênero. Mas a lógica é a mesma que vale para todo o resto da sociedade: você é aquilo que consome.

Leia mais:

‘Sim, elas podem gostar de super heróis!’
crédito: Babi Marques
Na última semana, um post do Catraca Livre recebeu 32 mil likes, e teve mais de 1400 compartilhamentos. No post, a imagem ao lado aparecia com a legenda: ‘Sim, elas podem gostar de super heróis!’. Nos mais de 800 comentários, os leitores compartilharam imagens de suas filhas e filhos quebrando muitos estereótipos com seus brinquedos e fantasias. Confira a galeria: