Coronavírus: segurança hídrica não é realidade no Brasil

Como esperar que a população periférica lave as mãos em tempos de uma pandemia quando não se tem água?

Por Igor Vieira, do Engajamundo

Os intercâmbios entre o ambiente e o meio são apresentados de formas distintas onde as populações vivem, sejam estes físicos, químicos, geológicos, geográficos ou de qualquer outra ordem; o social e o natural vão, em algum espectro, interagir. O homem enquanto espécie na natureza está integrado/se integrou basicamente em todos os aspectos dela, o que tem feito a catraca girar com o passar dos tempos, as populações foram crescendo e a exploração de recursos naturais, consequentemente, aumentando.

Dos recursos naturais explorados pela humanidade, a relação com a água é a mais intrínseca de todas. Não apenas porque uma pessoa tem em seu corpo 72% de água, mas, principalmente, porque tudo que se faz neste planeta depende dela. Como se aprende nas aulas de ciência na escola, apenas 0,5% da água doce está disponível no planeta, ainda assim, é difícil acessar e distribuí-la. É importante apresentar os fatos: o relatório de 2019 sobre o desenvolvimento dos recursos hídricos, das Nações Unidas, estima que mais de dois bilhões de pessoas no planeta são privadas do direito à água, muito embora o acesso é compreendido internacionalmente enquanto um direito humano.

Entenda a que ponto anda o acesso à água no país
Créditos: UN WATER
Entenda a que ponto anda o acesso à água no país

Essa violação de um direito que asseguraria o bem viver de bilhões de pessoas no planeta é um dos fatores que colaboraram para que estudos apontassem para o que chamamos de segurança hídrica. Um conceito relativamente novo que, em sua essência, pode ser entendido em camadas que se complementam, evidenciando elementos fundamentais: garantir acesso à água para o bem estar da população, garantir água para as atividades econômicas, garantir a preservação dos ecossistemas e, um último ponto fundamental, garantir resiliência a eventos extremos como inundações e as conhecidas secas e crises hídricas que o Brasil enfrenta historicamente.

Em um cenário ideal de segurança hídrica, lida-se com infraestrutura de planejamento, dimensionamento e gestão. No cenário global atual é preciso considerar, principalmente, a vulnerabilidade aos eventos climáticos extremos na forma de pensar sobre segurança hídrica – aqui, inclusive, é válida a reflexão que quase todo evento extremo associado à crise climática é relacionado à água.

É importante compreender que o Brasil não possui uma legislação específica e direta sobre segurança hídrica. De toda forma, há menções indiretas ao que ela preconiza no campo da saúde, saneamento, defesa civil, meio ambiente e recursos hídricos. Tratar de segurança hídrica é de extrema importância. A Constituição Federal, por exemplo, não trata do termo “segurança hídrica”, mas, indiretamente, trás menções correlatas que vão desde a noção de responsabilidade do poder público em casos de calamidades relacionadas à água, aos incentivos econômicos em regiões de escassez, e também ao controle da qualidade da água potável, fatores que são essenciais.

Pensando nessa linha e atribuindo à União funções, enxerga-se como competência dela o planejamento e promoção da defesa permanente contra calamidades públicas, secas, inundações e, principalmente, legislar sobre. De forma complementar, constitucionalmente, todos têm direito a um meio ambiente equilibrado. Como integrante do meio, a água está sob proteção dos interesses difusos, dos quais todos os cidadãos são titulares. Assim, trocando em miúdos e enfatizando o que já foi escrito: é dever do estado garantir acesso à água e é direito do cidadão o acesso ao recurso.

Vivemos em um cenário de associação de crises: hídrica, climática e uma de saúde recentemente gerada pela pandemia da covid-19. Em termos gerais, crises representam oportunidades de aprendizado e levantamento de questões – por que não conseguimos assegurar acesso à água de qualidade a todos e a todas?



Embora tenha grande valor (econômico, material, histórico, etc.), a água não pode e não deve ser vista como mercadoria, principalmente no recorte global deste século, quando a crise climática está causando migrações, muitas delas relacionadas à escassez de água, quando a crise hídrica impacta a vida de mulheres que comumente são as que saem em busca de água, e, quando há uma parcela de populações em vulnerabilidade nos centros urbanos que não possuem acesso à água e ao saneamento e precisam lavar suas mãos/manter higiene para lidar com a pandemia da covid-19.

Vale a reflexão que muitas das desigualdades que se relacionam com os conflitos e água também servem para a atual pandemia: começando pela disparidade entre ricos e pobres, os refugiados que são especialmente vulneráveis, a falta de informação e interesse público em levar alternativas em forma de políticas públicas, sejam elas de planejamento ou emergenciais.

Este é um problema gravíssimo que o país precisa ser mais incisivo na resolução. Como esperar que a população periférica lave as mãos em tempos de uma pandemia quando não se tem água? A disseminação de doenças é facilitada em locais que não possuem saneamento, cenário comum nas favelas e bairros afastados dos centros urbanos em todas as regiões do Brasil, que não estão nos planos diretores, que não fazem parte do sistema de coleta de esgoto e abastecimento de água, que não têm acesso à informação de como proceder para garantir que esse direito esteja presente em suas vidas diárias.

A reflexão do Dia Mundial da Água deste ano, em 22 de março, deveria ainda ser a mesma do ano passado e ela deve ser o foco para tudo que se referir ao acesso à água: ninguém deve ficar para trás. Por isso, novas formas de gestão dos recursos hídricos podem trazer a chave para garantir um acesso à água adequado para a população brasileira, que é tão diversa e adaptável: ferramentas de gestão comunitária associadas a descentralização dos recursos hídricos podem surgir como uma alternativa viável para lidar com esse problema complexo que envolve muitos outros fatores da vida cotidiana, como saúde, alimentação, educação e segurança física.

O excesso ou a falta da água são boas formas de provocar reflexões a respeito da maneira como se vive. No Dia Mundial da Água vale ter o pensamento sobre o que ela está tentando ensinar para a humanidade. A verdade é que a água não impõe nada, ela é totalmente receptiva e essencialmente aceita tudo – isso diz muito mais sobre nosso sistema do que sobre ela.

No Dia Mundial da Água, as Nações Unidas publicou o Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2020, focando em água e clima, que pode ser encontrado através deste link.

Em parceria com Engajamundo

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