Direitos das mulheres: avanços e retrocessos do governo em 2019

Neste governo, as políticas públicas para as mulheres foram prejudicadas, com desinvestimentos em atendimento, acolhimento, campanhas e educação

Por: Lucila Lang Patriani de Carvalho, Maria Martha Gibellini e Pamela Michelena De Marchi Gherini
Entenda as leis aprovadas sobre a questão da mulher em 2019

Primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, 2019 foi marcado pela aprovação de diversos projetos de lei em âmbito federal visando a questão das mulheres. No entanto, uma grande aprovação de leis não é, necessariamente, sinônimo de avanços, pois, se estas novas formas jurídicas não dialogam com o cotidiano enfrentado pela população feminina, estamos criando mais burocracia sem ganhos.

Pensando nisso, a Catraca Livre convidou Lucila Lang Patriani de Carvalho, Maria Martha Gibellini e Pamela Michelena De Marchi Gherini* para analisarem os avanços e retrocessos da legislação no ano passado, além de descreverem algumas das políticas que têm sido adotadas (ou não adotadas) pelo governo para enfrentar a crescente epidemia de violência contra a mulher no país.

Neste governo, as políticas públicas para as mulheres foram prejudicadas, com desinvestimentos em atendimento, acolhimento, campanhas e educação para autonomia econômica desta parcela da população. Existe um discurso de tolerância à violências, entre elas contra a mulher. Por exemplo, o presidente publicou, no dia 13 de novembro de 2019, um decreto que desresponsabiliza o Estado em relação à manutenção das Casas da Mulher Brasileira, com o argumento de que elas funcionam em apenas seis estados (Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Maranhão, Ceará, Paraná, Roraima e São Paulo) e têm um custo muito alto para tal.

Nesse mesmo decreto a palavra “gênero” foi excluída, não tendo referência às violências de gênero, reduzindo o serviço apenas às mulheres cis. No polêmico discurso de Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, no qual ela diz que “menino veste azul e menina veste rosa”, Damares nega a fluidez da identidade de gênero, prende essa identidade num sistema exclusivamente binário: homens e mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero atribuído no nascimento), estabelecendo um discurso abertamente transfóbico.

Uma das políticas que a ministra queria criar (supostamente em prol da proteção das mulheres) é implementar uma área da mulher em todas as delegacias do país, pintando-as de rosa. Esse é um exemplo de medida simplista ao tratar do complexo tema da violência contra mulher, pois pintar paredes de rosa como forma de aumentar o número de locais de denúncia não garante que haja um atendimento acolhedor e adequado. Além disso, a Ministra não propôs políticas de prevenção nem para o momento posterior da denúncia, como casas de acolhida e programas de incentivo e auxílio à construção de uma autonomia econômica.

Movimentos como esse enfraquecem as outras políticas públicas em funcionamento. Uma delas é o Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), que quase fechou em junho de 2019. O CRD é um serviço da assistência social, criado em 2008, voltado para a população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social. Localizado na região central da cidade de São Paulo, é um espaço que acolhe essa população, fortalecendo o sentimento de pertencimento e o convívio sócio comunitário, contribuindo para o desenvolvimento da autonomia e protagonismo. Desenvolve ações de promoção de cidadania, acolhimento, apoio psicossocial, viabilizando o acesso à rede de políticas públicas e inserção em programas socioassistenciais, detectando necessidades e capacidades para novos projetos de vida.

Apesar de ser um lugar que faria ponte com outros serviços da rede, o CRD faz, muitas vezes, o que a rede (que exclui a população LGBTQIA+) deveria fazer. Um exemplo recorrente disso é quando uma Unidade de Pronto Atendimento do SUS recusou atendimento às usuárias do serviço alegando que “não saberia lidar com trans”. Pensar na saúde da mulher é pensar também no acesso livre e legítimo que elas têm nos serviços de saúde pública. Caso o CRD fechasse de fato, teríamos uma parcela significativa de usuárias desassistidas que não seriam acolhidas nos outros serviços. E isso estamos falando de apenas um serviço.

Importante frisar que diferentes mulheres são afetadas de formas distintas com os desmontes das políticas públicas. Mulheres com mais privilégios (ricas, cis, brancas, héteros) com acesso a serviços particulares como advogadas, hospitais, terapias não sofrem com o desmonte como mulheres que dependem exclusivamente dos serviços. Outro ponto é que a implementação das políticas públicas, antigas e recentes, é desigual no território brasileiro. Se tomarmos como exemplo o número de psicólogos no Brasil temos quase um terço deles apenas no estado de São Paulo (106.059 de 363.303).

É sem dúvida um prejuízo irreparável estarmos diante de um governo que naturaliza e muitas vezes incentiva discursos de ódio contra minorias. Dificilmente sairemos do lugar enquanto não houver um posicionamento coordenado de rejeição à violência e valorização da experiência da sociedade civil na criação de políticas públicas.

Abaixo, você confere ponto a ponto da análise sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro no que diz respeito às mulheres:

Avanços e retrocessos legislativos em 2019

Como muitos já sabem, o Estado brasileiro é dividido em 3 poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Para que consigamos resolver problemas estruturais da nossa sociedade, como a violência de gênero, é preciso que os três poderes se mobilizem, já que cada um age de forma diferente.

Quando estamos falando de avanços legislativos que ocorreram no âmbito federal (diferente de leis estaduais e municipais) estamos nos referindo ao trabalho do Congresso Nacional, formado pelos Senadores e Deputados Federais eleitos. São estes os responsáveis por criar as leis que integram o nosso sistema. A atuação destes é independente do Presidente da República, que é o chefe de um dos outros poderes, o Executivo. Esses poderes são independentes entre si e um não pode impedir o trabalho do outro apesar de eles se fiscalizarem entre si.

Com isso dito, fica mais fácil de entender porque fazer novas leis é só uma ponta do problema todo e não tem, necessariamente, relação com o Presidente da República, a não ser que este vete alguma lei (o que ocorreu) ou que a lei seja de iniciativa dele (que não foi o caso).

Uma das leis mais importantes para o combate à violência de gênero é a conhecida Lei Maria da Penha (LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006). Explicamos com mais calma sobre como ela funciona no texto “13 anos da Lei Maria da Penha: entenda quando ela pode ser usada”. Ela não é a única lei que lida com esse tema no nosso ordenamento mas é fundamental para enfrentar a violência contra a mulher cometida por pessoas próximas da vítima como parentes, companheiros, ex-namorados etc. Esse tipo de violência é a mais comum no nosso país, não aquela cometida por estranhos na rua, como muitos imaginam.

Como a Lei Maria da Penha sofreu diversas alterações por outras leis em 2019, vamos explicar quais foram elas. Depois, falaremos brevemente sobre algumas outras normas que passaram a integrar o sistema. Vale lembrar que este artigo não apresenta todas as leis publicadas neste tema em 2019, e sim, as que as autoras entenderam como sendo as principais.

Alterações legislativas à Lei Maria da Penha em 2019

Conforme discutimos no texto que mencionamos acima, a Lei Maria da Penha foi pensada como uma política pública integrada e interdisciplinar. Ficar “remendando” a lei sem respeitar a sua lógica de construção pode criar problemas que não existiam, principalmente se as modificações não forem pensadas dentro do contexto que a lei se aplica.

Abaixo, está a lista de leis que alteraram a Lei Maria da Penha APENAS em 2019. Desde sua publicação em 2006, esta Lei foi diretamente modificada 9 vezes, sendo 6 delas só no ano passado. Abaixo, faremos breves comentários sobre elas:

  • LEI Nº 13.827, DE 13 DE MAIO DE 2019 – Autoriza, em algumas hipóteses, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes.
  • LEI Nº 13.836, DE 4 DE JUNHO DE 2019 – Acrescenta dispositivo ao art. 12 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, para tornar obrigatória a informação sobre a condição de pessoa com deficiência da mulher vítima de agressão doméstica ou familiar.
  • LEI Nº 13.871, DE 17 DE SETEMBRO DE 2019 – Dispõe sobre a responsabilidade do agressor pelo ressarcimento dos custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica e familiar e aos dispositivos de segurança por elas utilizados.
  • LEI Nº 13.880, DE 8 DE OUTUBRO DE 2019 – Prevê a apreensão de arma de fogo sob posse de agressor em casos de violência doméstica.
  • LEI Nº 13.882, DE 8 DE OUTUBRO DE 2019 – Garante a matrícula dos dependentes da mulher vítima de violência doméstica e familiar em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio.
  • LEI Nº 13.894, DE 29 DE OUTUBRO DE 2019 – Prevê a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável nos casos de violência.

Dentre estas modificações de 2019, algumas provocaram mais controvérsia do que outras. A possibilidade de aplicação de medida protetiva por autoridade policial talvez seja a lei que provocou mais discussões e críticas por especialistas. Não só pela possibilidade de dar tal poder a outras autoridades que não fossem o Judiciário mas pela problemática de delegacias não estarem preparadas para avaliar a seriedade de cada pedido, podendo colocar a vida de vítimas que tiveram seus pedidos negados em risco. Isso porque, a medida protetiva muitas vezes é uma forma de prevenir o feminicídio.

Já a lei que o obriga o agressor a restituir o SUS, muitas pessoas estão se perguntando o quanto não será uma penalidade apenas aos agressores de baixa renda uma vez que agressores ricos podem nem ser impactados por terem que pagar ao Estado tal valor.

Já a facilitação do divórcio também possui críticas no sentido de eficácia já que acelerar uma separação ou divórcio, sem que haja a repartição de bens, poderá ser pouco útil na prática.

No que se refere à matrícula dos dependentes da mulher vítima de violência em instituição de educação básica pública, existe um desafio prático destes dados serem inseridos em um sistema que pode ser acessado pelo agressor. Muitas mulheres optam por não matricular os filhos na rede pública para não correr o risco de serem encontradas pelos agressores que as ameaçam. O sigilo de tais informações é um gargalo importante da norma.

Com base nessa lista e nos comentários é possível perceber que a simples aprovação de leis novas não necessariamente garante maior proteção ou aplicabilidade às usuárias da política pública. Isso não significa que elas tenham sido ruins. Apenas quem lida com a rotina de vítimas e elas próprias poderão relatar as dificuldades dessa política pública. Por isso, é importante que o processo legislativo chame a sociedade civil para pensar em conjunto possíveis soluções para os problemas ainda existentes.

Outras inovações legislativas sobre o tema

Abaixo, também listamos outras leis que foram aprovadas em 2019 no âmbito Federal e que afetam diretamente as mulheres (e meninas) no Brasil.

  • LEI Nº 13.811, DE 12 DE MARÇO DE 2019 – Proíbe o casamento infantil em qualquer hipótese

Segundo a ONU, o Brasil tem maior número de casamentos infantis da América Latina e o 4º mais alto do mundo. Reconhecendo esta triste realidade, foi sancionada esta lei que altera o Código Civil e proíbe o casamento de menores de 16 anos. Antes, era permitido o casamento de menores de 16, desde que autorizado pelos pais, para evitar cumprimento de pena criminal (em casos específicos) ou em caso de gravidez.

Essa alteração, por si só não trará uma mudança significativa já que a impossibilidade de registrar o casamento não impede que ele ocorra na prática, sendo realizado em cerimonias religiosas, por exemplo. Contudo, haver uma mudança institucional é um importante avanço e inicia uma mudança social.

É válido notar que essa lei afeta meninas muito mais do que meninos já que muitas delas são casadas com homens maiores de idade, o que corrobora não apenas para a cultura do estupro como também para a naturalização da pedofilia, que é muito comum em outros casos como na sexualização precoce de atoras mirins.

É por casos como esses que uma política pública que busca a abstinência não é tão eficaz como uma que promova autonomia e informação sobre as relações. Isso pode ser dito porque muitos desses casamentos e relações são arranjados, não sendo portanto, uma consequência da vontade ou escolha da vítima e sim como resultado de estupro de vulnerável e/ou outras formas de exploração sexual de crianças e adolescentes. Abstinência não resolve o problema, mas acesso à informação talvez sim.

  • LEI Nº 13.931, DE 10 DE DEZEMBRO DE 2019 – Torna compulsória a notificação de casos de suspeita de violência contra a mulher pelos serviços de saúde às autoridades policiais

Esta lei provocou muita controvérsia, tanto é que foi vetada pelo Presidente “por contrariedade ao interesse público”. O veto, contanto, foi derrubado pelo Congresso Nacional, fazendo com que passasse a valer mesmo assim.

Ela obriga profissionais de saúde a registrar no prontuário médico da paciente e comunicar à polícia, em 24 horas, indícios de violência contra a mulher. Antes disso, era obrigatório comunicar o ocorrido apenas ao sistema SUS para efeitos de estatística e políticas públicas.

Os dois pontos principais que entram em confronto com esta norma é a autonomia e liberdade da mulher vítima de violência e o poder/dever do Estado de prevenir e combater a violência. A subnotificação deste tipo de crime é um grande obstáculo para a resolução dos casos, contudo, mulheres que estão sob ameaça de morte podem acabar sendo assassinadas caso as autoridades sejam notificadas, dificultando, portanto, o acesso das vítimas a serviços de saúde.

Estes são apenas alguns dos vários apontamentos feitos a estas leis por especialistas. Só o tempo dirá sobre a real mudança promovida por elas.

A criminalização da homotransfobia pelo judiciário

Mulheres fazem grande parte da população LGBTQIA+ e muitas violências com base em gênero também ocorrem por suas orientações sexuais e/ou identidades de gênero. Uma menina que é espancada pelo pai por ser lésbica ou trans (por exemplo) não está apenas sendo vítima de violência doméstica (protegida pela Lei Maria da Penha) como passou a ser vítima do crime de homofobia, também, de acordo com as modificações ocorridas em 2019.

Outra forma de violência de gênero contra a população LGBTQIA+ feminina é negar tratamento em consultórios ou desrespeito ao nome social, como forma de humilhar e ofender. Discriminação com base em homotransfobia passou a ser crime conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que criminalizou condutas discriminatórias contra essa população com base na Lei de Racismo. Caso isso ocorra, é possível registrar um boletim de ocorrência na delegacia mais próxima do local onde ocorreu o crime. Uma outra forma de noticiar às autoridades é fazendo uma denúncia ao Ministério Público.

*Lucila Lang Patriani de Carvalho é advogada, sócia do escritório Lang & Michelena Advogadas e professora; Maria Martha Gibellini é psicóloga e acompanhante terapêutica; Pamela Michelena De Marchi Gherini é advogada, sócia do escritório Lang & Michelena Advogadas e membra da Rede Feminista de Juristas.