Não se preocupe, você não está doente — nem o juiz disse isso

A Internet é uma loucura, um assunto vem à tona e todo mundo tem opinião, dá pitaco, faz meme e isso, em geral, é ótimo. Debate nunca será uma coisa negativa, não importa quão terrível o assunto seja. Mas, como jornalista, aprendi que é importante pesquisar sempre antes de emitir qualquer opinião. Desta forma, realizei uma intensa pesquisa com a intenção de escrever um texto sobre a polêmica decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, que, disseram por aí, tinha autorizado que ser gay é doença. Vamos ao meu passo a passo:

  1. A resolução
    Primeiro eu li a resolução do Conselho Federal de Psicologia. Eu te aconselho a fazer o mesmo, mas, em resumo, ela diz que homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio, nem perversão, e que os psicólogos não podem tratar como doença ou anomalia comportamentos e práticas homoeróticas, muito menos tentar reverter à força orientações homossexuais em tratamentos não solicitados.

    Não somente por ser lésbica, mas também por ser uma pessoa decente, eu concordo plenamente com a resolução. Ninguém deve ser tratado como doente, nem forçado a se relacionar com quem não queira.  “Que horror o que esse juiz fez”, pensei, ao ler o bafafá no Twitter. Mas isso não era tudo; para entender o tema eu precisava ler a liminar o magistrado.
  2. A liminar
    Ótimo, fui então ler a liminar do juiz. Nela, Carvalho diz que  “A norma em linhas gerais não ofende os princípios maiores da Constituição.” Oi? Peraí, o cara está concordando com a resolução, ou seja, ele está dizendo que ser gay não é doença!  E ele diz depois que o problema da norma é que esta, “se mal interpretada, pode levar à equivocada hermenêutica, no sentido de se considerar vedado ao psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados a orientação sexual ou reorientação”. Só para esclarecer, hermenêutica significa interpretação de texto. Então tá dito aí que a norma está mal escrita e que fica parecendo que não se pode nem falar em orientação sexual com psicólogo. Até aí OK, tô entendendo o juiz.

    O magistrado diz ainda que “não se deve privar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que voluntariamente venham em busca de orientações a cerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação. Até porque o tema é complexo e exige aprofundamento científico necessário”. Bem, como uma pessoa com fortes afinidades com o mundo acadêmico e a ciência eu devo concordar que a liberdade científica é imprescindível, não dá pra discordar deste ponto.

    Com relação a essa coisa toda de “atendimento àqueles que voluntariamente busquem orientações acerca da sua sexualidade”, o juiz que reclama tanto da hermenêutica do texto alheio deveria se atentar à hermenêutica de sua criação textual também. O que afinal são “orientaçōes acerca da sexualidade”? Pode ser muita coisa. Nesta frase está sim implícita a possibilidade da existência de tratamentos para uma “cura gay”. Basicamente diz aí que está aberta a possibilidade, no caso em que um homem procurar um psicólogo dizendo que não quer mais se relacionar com homens, de o psicólogo, porque o paciente assim pediu, ajudá-lo nesta meta. Mas veja bem, somente se o paciente pedir.

Eu acho que a única coisa possível para um psicólogo que receba um gay que quer deixar de sentir o que sente é ajudar esse gay a aceitar que não tem problema nenhum nele se sentir desse jeito. Mas deve ter gente que sente desejo por pessoas do mesmo sexo, mas opta por ignorar isso porque é mais fácil, ou sei lá. Alguns conseguem facilmente, mas outros talvez queiram ajuda de um psicólogo para lidar com isso.

Não acho errado que alguém conscientemente procure ajuda para alguma questão de sexualidade. Se uma pessoa se sentir mais feliz como heterossexual, mesmo que sinta de alguma forma desejos homossexuais, ótimo pra ela. O mesmo livre-arbítrio que prego pra mim, o mesmo direito que desejo ter de me relacionar com uma mulher, sendo uma, eu desejo também àqueles que não querem de forma alguma se relacionar com alguém do mesmo gênero.

Portanto, a princípio, até mesmo esse precedente aberto pela liminar me parece razoável. Isso na teoria. Mas e na prática? Será que muitos gays e lésbicas não podem ser induzidos a buscar um psicólogo e dizer que estão conscientes, quando na verdade estão sendo pressionados? Nossos psicólogos estão preparados para receber essas pessoas e notarem a diferença entre aquele que está sofrendo e se destruindo pela decisão de se “manter hétero” e aqueles que estão tranquilos e plenamente conscientes da decisão de sublimar seu “lado gay”? Aliás, será que é possível sublimar tal sentimento?

RESULTADO: Ser gay não é doença, o juiz não disse isso, ele inclusive reforça o texto do CFP que diz que, se algum psicólogo afirmar que homossexualdade é doença, ele será punido. Mas, sobre “cura gay”, o texto não é claro, e pode abrir uma prerrogativa perigosa.