Projeto mapeia escritoras de periferia em todo Brasil

Com foco na produção feminina, projeto Margem dá visibilidade às escritoras da cultura marginal e periférica

Trinta mil exemplares foi a tiragem da primeira edição de “Quarto de Despejo”, obra de 1960, que registrou o cotidiano de Carolina Maria de Jesus – mulher, negra, favelada – de família analfabeta do interior de Minas Gerais, infância quase sem estudo, da luta diária de quem fez do lixo – catado e vendido – combustível suficiente para mudar a sorte da própria vida. Seu testemunho, traduzido em 14 línguas, ecoou por 20 países ao redor do mundo. Se foi aos 77 anos, pobre, recolhendo papel, no imprevisível cambaleio da vida severina.

Passados quase 40 anos de sua morte, Carolina teria lugar garantido, hoje, no projeto “Margens, produzido de forma independente onde escritoras mulheres, poetas ou autoras podem preencher um formulário para registrar sua obra, para fins de mapeamento e, sobretudo, visibilidade.

A ideia surgiu da inquietude da jornalista mineira Jéssica Balbino, militante do movimento hip-hop de longa data, que das vivências tiradas da rua, investigou a contribuição das mulheres da literatura marginal e periferia de todo Brasil.

Estrutura do projeto apresentada na ilustração

Confira a conversa que rolou com a autora do projeto Margem: 

CL – Levando em conta o papel da mulher no Brasil durante as últimas décadas, é possível afirmar que a posição das mulheres está passando por uma transformação, dando lugar a uma contribuição mais independente, libertária e autônoma? Neste caso, qual a importância dos saraus da periferia?

Jéssica – Sem dúvidas. Os saraus, por si, são locais de empoderamento do sujeito e é por meio deles, nestes espaços, que as mulheres conseguem fazer valer suas vozes. É claro que é um processo de construção, de resignificação, de retomada de voz, mas sem dúvida, o Margens vem pra mostrar que a posição feminina está sim independente, libertária e autônoma.

O levantamento que estou fazendo – ainda estou coletando dados, conversando com as pessoas, acompanhando – mostra que a produção feminina ainda é 20% inferior a dos homens, tanto nos livros como nas antologias, mas, mostra também que nos últimos três anos, tivemos várias antologias 100% femininas, organizadas por mulheres, com a temática feminina rondando boa parte das poesias e prosas e mais, nas antologias que são feitas nas escolas, com os jovens, a presença das mulheres é maior que a dos homens. Este é um dado novo, mas que mostra que a posição da mulher está mudando e mais do que isso, está se consolidando no cenário.

CL – Ainda falando sobre o poder da literatura, mas, dessa vez, inserido na cultura hip hop, como você avalia esse novo momento que vive o movimento, levando em conta o protagonismo das mulheres frente ao microfone? A mulher sempre teve voz ativa no hip hop ou agora, com a popularização do rap, tem conquistado mais espaço com as novas cantoras?

Jéssica – Uma vez, um amigo também jornalista me disse que o hip-hop era uma reprodução da sociedade, como uma miniatura, e nesta miniatura temos os mesmos problemas que existem em qualquer sociedade, entre eles, o machismo, que sempre foi muito forte na cultura hip-hop.

Veja, o hip-hop tem 40 anos, neste período, quantos nomes de mulheres você consegue lembrar que se destacaram? São poucas. Mas eu não atribuo isso a ‘popularização’ do rap, mas à consciência das mulheres mesmo, que tomaram seus lugares, seus espaços, entenderam que não precisam mais se disfarçar de homens para estar inseridas na cultura. Contudo, é uma batalha muito grande.

No Brasil temos movimentos como o Hip-Hop Mulher e a Frente Nacional de Mulheres do Hip-Hop (FNMH²), que organizam as mulheres, empoderam e lutam por espaços, como o que foi conquistado somente este ano na Virada Cultural. Ainda vejo como uma construção dentro da cultura, do movimento. As mulheres ainda não são convidadas para eventos. Quando são, é pra cumprir cota.

Quanto temos uma mesa de debates, tem 5 homens e 1 mulher. Ou, uma mesa só de mulheres. É válido, mas acho que avanço seria parar de segregar mesmo. Misturar, enfim. Sou otimista e acho que estamos caminhando para esta evolução, essa voz ativa.

CL – Em um país onde a violência contra a mulher se perpetua desde simples ações do dia a dia à defasagem salarial no mercado de trabalho, como a literatura pode ser utilizada a favor do público feminino no debate sobre temas como igualdade de gênero, aborto, violência doméstica e feminicídio?

Jéssica – Eu não vejo outra forma de usar a literatura se não for por estas causas ou por coisas que oprimem a população. A literatura marginal/periférica/divergente (seja lá o termo que queiram dar, pra polemizar) tem como vetor o que está acontecendo e o reflexo disso são poesias e prosas que denunciam a violência policial, do patrão, de classes.

A violência contra a mulher, os abortos clandestinos, a política abusiva, os feminicídios, etc. O que eu vejo é que uma denúncia feita por meio da literatura pode incentivar outras e assim sucessivamente. Como jornalista, observo que a literatura marginal é um relato do cotidiano da periferia e das classes menos favorecidas em forma de arte. É literatura que comunica, que denuncia, que reporta. E é um dos movimentos mais importantes que o Brasil já teve, tanto em forma de organização e articulação, como em forma de arte e estética.
CL – E pra finalizar… como a sua caminhada te ajudou enquanto jornalista e militante do movimento hip hop. (quais as referências, inspirações e contextos que te formaram dentro da sociedade)

Jéssica – Eu me apaixonei pelo hip-hop ainda na adolescência e como não sabia rimar, riscar discos, dançar ou graffitar, eu fui pesquisar sobre a cultura e nesta busca, esbarrei na literatura marginal e não saí nunca mais. Foi isso tudo que me fez ter vontade de ser jornalista. Minha curiosidade, vontade de mudar e denunciar o mundo surgiu neste contexto. Antes de ser jornalista eu sou uma cria do hip-hop e da literatura marginal.

E, justamente por ter vivenciado isso tudo desde o início, sinto que tenho propriedade – e responsabilidade – por contar nossa própria história. Meu TCC na faculdade foi sobre hip-hop e minhas pesquisas nunca pararam. Desde então, persigo a ideia de fazer algo voltado pra literatura marginal e entrei no mestrado com este projeto, então, é minha forma de contribuir e devolver pra cultura que eu amo tanto, um pouco do que aprendi.

Já falar sobre as mulheres foi algo que surgiu depois, por causa da militância que sempre tive, por ser parte da FNMH², por defender a questão dos gêneros. Aí, a ideia de criar um site (www.margens.com.br) para fazer uma reportagem 360 sobre o trabalho é pra romper com esse muro e esse ranço que existem entre a periferia e a academia. Mas, não dá pra esquecer, sou uma periférica na academia, e não uma acadêmica pesquisando a periferia.