‘Ser mulher negra no México é como não existir’, diz ativista

Idealizadora do projeto Afrodescendência México, Tanya Duarte conta como a invisibilidade das pessoas negras se manifesta no país

A mulheres latino-americanas estão logo ali, aliás, elas estão aqui também, no Brasil. Entretanto, em meio ao países latinos que nos cercam, alguns carregam características bem marcantes quando o assunto são as mulheres negras e como é ser negro por lá. No México, apenas no passado, pessoas negras foram consideradas mexicanas. Antes, uma espécie de “censo” contabizou os negros que nasceram ou vivem no país.

Quem contou ao Catraca Livre, para encerrar a série especial #Afrolatinas, foi a psicóloga, professora de medicina maia e ativista Tanya Duarte, que toca o projeto Afrodescendencia Mexico em San Cristóbal de las Casas, no estado de Chiapas. O objetivo é resgatar, preservar e compartilhar história, cultura, arte, medicina, crenças e educação africana e caribenha.

O projeto busca também a equidade de gênero e o fim da violência contra pessoas negras no México.

Para entender qual o cenário, Tanya nos relatou como esse movimento tem acontecido mesmo que lentamente no México. 

Leia abaixo trechos da entrevista:

Catraca Livre – Gostaria de conhecer sua história. Onde você nasceu? Como é e era a relação com a sua família?

Tanya Duarte – Meu pai é do Haiti e minha mãe veio do País Basco, no norte da Espanha. Quando a família da minha mãe descobriu que ela estava grávida de um negro, isso foi visto como um problema. Depois, ela ficou noiva e acabou se casando com um rapaz branco. Então, eu cresci em uma família branca, com pais brancos, um irmão e uma irmã também brancos.

E como era isso pra você, eles te reconheciam como afrodescendente?

Temos que entender que a palavra “afrodescendente” foi reconhecida no México somente em 2011. Antes disso não se escutava, não era usada. Eu só conheci o meu pai quando eu tinha 20 anos, ele obviamente se aceitava como homem negro, porém, para a maioria dos mexicanos, o termo ainda é desconhecido.

Tayna e sua família. Quando criança, ela ainda não conhecia o pai e não tinha contato com outras pessoas negras

Isso tem mudado por aí?

A situação é complicada por muitas razões históricas e políticas. México e Peru são dois países de população majoritariamente indígena. Seguida por mestiços (indígenas e brancos), brancos e uma minoria afrodescendente. Nós não estamos incluídos na Constituição e tampouco e em livros de antropologia, história, geografia, em nada. O México é um país de 120 milhões de habitantes, é muito grande, os negros estão por toda parte do território, mas a maioria ainda se reconhece mais como indígena do que como negro. Se  não existimos nem na Constituição, muito menos temos participação política. Existem projetos e movimentos que tentam forçar o México a mudar sua Constituição para incluir-nos. Porém, o governo do México tem negado isso por mais de 20 anos. E para eles não há nenhum interesse.

Por que você acha que isso aconteceu? Existe uma perspectiva de transição?  Pensando principalmente em projetos que surgiram, ou vão surgir, como o seu, o “Afrodescendencia México”.

Há projetos afromexicanos que tentam obrigar o governo a considerar atividades e pesquisas que falem dos negros. Houve um censo ano passado que diz que somos 1,4 milhão de pessoas no país. Não é possível que isso retrate a realidade, visto que a maioria dos afromexicanos nem sabem dessa ascendência. É necessária uma campanha permanente para informar sobre a existência dessa terceira raiz que forma historicamente a população mexicana. Hoje, as pessoas não sabem que os negros existem, não sabem da história. Então, na realidade, não sabemos quantos somos. Mas podemos deduzir que somos cerca de 5 milhões de pessoas. O censo foi feito no ano passado por uma organização do governo chamada INEGI (Instituto Nacional de Estadística y Geografía). Entretanto, essa pesquisa foi feita somente em alguns estados, não em todo o país. O mais grave é que o México não está preparado para o censo. Se alguém disser: “Você é negro”, para certas pessoas é como um insulto, parece que não é correto. Pessoas acham que esse conceito é algo que retrata o tempo de colonização, palavra criada pelos europeus e que carrega uma conotação racista. Soa como algo brutal, animal ou não evoluído. É uma tremenda polêmica nesse contexto!

Isso fez com que você iniciasse seu ativismo? Como essas questões surgiram na sua vida?

Bom, isso aconteceu há mais de 20 anos, mas claro que ninguém me ouvia, ou se interessava. Eu comecei a ter atenção em 2011, quando se proclamou o Dia dos Afrodescendentes (data instituída pela ONU em 10 de dezembro de 2010). Tenho encarado meu ativismo também como forma de protesto pessoal, pois sempre que estava fora do país e voltava, a imigração me parava, a Polícia Federal me detinha, querendo sempre me deportar. Nós, no México, temos um título de eleitor, como documento oficial, uma minoria tem passaporte. Quando você mostra esse título dizendo que você é negra, muitas vezes ouvi que com certeza eu deveria ter roubado ou que ele era falso. Nunca fui deportada ou tive problemas maiores porque nesses casos ando o tempo todo com meu título eleitoral, meu passaporte, carteira de habilitação e levo uma certidão de nascimento oficial dentro da minha bolsa. Por essa razão não me deportaram, mas eles me detêm constantemente. Muito do meu ativismo tem a ver com o protesto de direitos humanos. A Anistia Internacional tem registros de mexicanos negros deportados para o Haiti, Honduras e Belize, só porque se parecem, e as autoridades não acreditam na veracidade dos nossos documentos.  É um problema grave e cotidiano!

Em 2018, Tanya quer reunir diversas mulheres negras latinas em um festival para comemorar o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha

As pessoas não acreditam que você é mexicana?

Escuto, de três a quatro vezes por semana, pessoas nas ruas me perguntando de onde sou. As pessoas por Facebook me perguntam o mesmo: “Desde quando vive no México?”, “Por quê vive no México?”. E eu explico: “Vivo no México porque sou mexicana”. Minha página começou quando comecei a reportar quantas vezes as pessoas me faziam essa pergunta. Muitas pessoas diziam que eu estava mentindo, dizendo: “Não é possível, não há negros no México”. Tanto estrangeiros como mexicanos. Então é uma negação contínua de nossa existência, todos os dias.

Pensando nisso, a questão das mulheres negras deve ser ainda pior, não é mesmo? Como é ser uma afromexicana?

Muito difícil, porque estamos expostas à violência sexual. Primeiro há um mito de hiperssexualização da raça negra, da mulher negra. Então, com todas nós ocorrem muitas situações de abuso, desde as crianças até mais velhas. Várias vezes quando era mais nova me perguntavam se eu era puta, em que boate eu dançava, ou em que lugar eu tirava minha roupa. Agora que sou velha, mais gorda, perguntam se sou cantora de jazz ou salsa, isso também já me foi perguntado quando estava na França e na Espanha. Pensam também que os negros não têm educação, que não vão para a escola e eles ficam muito surpresos quando me ouvem discursando. Há muitos microrracismos na linguagem, em frases como: “Você é negra, mas é boa gente”, “Você é negra, mas é inteligente”.  Quando entramos no transporte público, algumas pessoas seguram as bolsas ou trocam de lugar para não ficarem do nosso lado. O México é um país extremamente racista! Primeiro com os indígenas e depois com os negros. Muitas pessoas indígenas têm medo dos negros, pensam que somos bruxos, mágicos ou seres malvados. Todos os estereótipos negativos de pessoas negras que são falados mundo afora, no México também temos, não é diferente.

O feminismo é algo presente para as poucas mulheres negras que se reconhecem como tal?

O feminismo aqui é mais parecido com o feminismo norte-americano ou com o feminismo europeu. Tenho muitas irmãs indígenas que estão organizando discussões para seu povo. Há três semanas, na universidade em que colaboro, convidamos Yuderkys Espinoza, uma feminista dominicana que vive na Colômbia e que é negra. Tivemos encontros também com feministas negras cubanas e outras colombianas. Na primeira discussão sobre feminismo negro por aqui só havia duas mulheres negras. Mas nossas referências de lutas mais importantes são Angela Davis e Chimamanda Ngozi Adichie. Acredito que falta muito trabalho, estamos só começando! Estou tentando organizar para o próximo ano um encontro internacional com mulheres negras latino-americanas.

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