Trans do hóquei fala sobre luta no esporte (e opina sobre Ivan)

Jessica Millaman venceu barreiras no esporte argentino

Jessica Millaman é daquelas que vencem dentro e fora do jogo

Vencer estatísticas não é fácil no Brasil – e nem nos países vizinhos. Ainda assim, Jessica Millaman, argentina de 32 anos, entrou pra jogo e contrariou o que era esperado para o seu destino, se transformando na primeira atleta trans do hóquei em uma terra onde o esporte é um dos mais populares.

Em entrevista ao Catraca Livre, Jessica falou sobre os desafios que enfrentou e, assim como na vida esportiva, marcar cada gol não foi fácil. “Aos 14 anos, decidi respeitar o que eu sentia, as coisas foram bem difíceis com a minha família, por isso, aos 15, saí de casa para respeitar meus sentimentos. Foram anos difíceis e horrorosos, imagine, de repente, se encontrar só na vida. Mas ser quem eu sentia ser era mais forte do que a dor de ficar sozinha no mundo”.

E o jogo seguiu. Foi no esporte que ela encontrou o seu refúgio. “Desde pequena, o esporte me encanta muitíssimo. Sou a menor de quatro irmãs, e as três jogam hóquei. Nasci vendo o esporte. Aos 10 anos, parei de jogar porque não me sentia um menino e me doeu. Retornei aos 27, minhas irmãs insistiram. Em 2012, com meu novo documento, minhas irmãs e companheiras me pediram para eu me inscrever oficialmente como atleta para competir”. Deu certo! Mas nem sempre foi assim.

Jogo difícil

“Minha adolescência foi complicada. No recreio, sem amigos, ficava em um banco esperando o sinal tocar. Na saída, apanhava muito. Ninguém me dava assistência. Tive a maturidade para saber que tudo passaria e que não estava errada ser o que eu sentia e pensava ser”, conta Jessica.

Ao lado das companheiras, fazendo o que ama, Jessica se diz realizada

A ausência dos pais prejudicou ainda mais o momento, levando Jessica para um caminho que nunca quis seguir. Um baita gol contra! “Totalmente sozinha na vida, não sabia como me sustentar e me prostituí. Eu deveria estar em casa sendo uma menina feliz com minha família. Nunca quis fazer isso, mas era o que me dava o de comer. A prostituição me fez conhecer pessoas realmente ruins, mas me ensinou que qualquer um merece oportunidades. Me ensinou a ajudar os outros, amadureci muito rápido”, conta.

Assim que conseguiu aprender outra profissão – Jessica é cabeleireira – ela deixou a prostituição. Aos poucos, sua família passou a entender que ela era, de fato, uma mulher. E as coisas foram voltando ao eixo que sempre quis. “Hoje tenho felicidade plena, tenho pais e irmãs presentes comigo, assim gosto de dizer que o passado está no passado. Finalmente, tenho também um trabalho que me enche de alegria, foi como voltar a ser gente, porque eu me sentia fora do sistema”.

E do passado, Jessica deixa apenas um alerta. “Estive a ponto de quase sofrer um abuso sexual, mas me dei conta que era um erro. Que a pessoa me faria uma maldade. E ela só não conseguiu porque escapei completamente sozinha. É algo que nunca contei, mas acho importante contar. Pais, cuidem dos seus filhos. Irmãos mais velhos, cuidem dos menores”, alerta.

Representatividade

Mas não é como cabeleireira que Jessica se sente plena. Ser a primeira mulher trans a competir e abrir caminho no esporte para as outras mulheres transexuais é uma felicidade enorme. Ela acredita que tudo o que acontece hoje é um retorno da própria vida.

Jessica acredita que a representatividade ajuda os jovens a se aceitarem

“Voltei a me relacionar com minhas companheiras, com minhas irmãs. Hoje, o esporte é tudo para mim.” E, ainda que de vez em quando esbarre no preconceito, seja com xingamentos ou palavras ruins de rivais,  Jessica se sente bem representando um time profissional na província de Chubut, no sul argentino.

Para ela, a representatividade é extremamente positiva para garantir que as futuras crianças que se descubram como transexuais em sua adolescência não passem pelo que ela enfrentou.

E não apenas no esporte, Jessica acha que discutir este tema, que ainda é tabu para muitas pessoas, pode trazer avanços incríveis, na medida em que pais e mães se sintam tocadas e possam, se eventualmente passarem por isso na família, ajudar a criança com amor e respeito.

Ao saber que no Brasil, temos o Ivan, de “A Força do Querer”, passando em horário nobre, ela ficou feliz e opinou: “Acho primordial que a transexualidade seja abordada em novelas e programas. Isso é muito bom porque traz avanço. Para pessoas que tem um pensamento errado é a chance de ver coisas na TV e perceber o quanto estão equivocadas. Que transexuais tem direito quanto qualquer outra pessoa de ter um trabalho, uma vida social. Tenho sobrinhos e vê-los crescer felizes me faz querer que as crianças transexuais também possam ter uma vida assim.”

Sem deixar a animação cair, Jessica Millaman diz que “a vida é para os valentes”.  Vencedora!

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