‘Uma igreja que exclui não aprendeu com Jesus’, diz pastora trans

Alexya Salvador fala sobre assuntos como infância, maternidade, transexualidade, relacionamento e intolerância religiosa

Alexya Salvador: pastora, transexual e mãe de dois filhos

“O que era sonho, agora é realidade.” É assim que a pastora Alexya Salvador resume a sua trajetória de vida até agora. Um sonho que enfrentou provações que ainda são grandes obstáculos para a sociedade brasileira, como a transfobia e o preconceito, mas que finalmente se realizou para a professora e costureira de 36 anos.

Em um sistema heteronormativo como o nosso, como ser uma mulher transgênera, com um relacionamento afetivo, dois filhos, e conciliar tudo com a sua fé religiosa? A experiência e as ideias da pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana mostram algumas possibilidades para lidar com tudo isso e muito mais.

Como por exemplo com a maternidade: ela adotou um menino cisgênero e uma menina trans – a segunda criança transgênera no país a conseguir na justiça a mudança de nome e identidade de gênero, conta a mãe.

Alexya, o marido e os dois filhos: uma família linda e feliz
Alexya, o marido e os dois filhos: uma família linda e feliz

Nesta entrevista concedida ao Catraca Livre, ela fala de outros assuntos como infância, transexualidade, relacionamento e intolerância religiosa, e sentencia:

“Uma religião que exclui não entendeu nada do que Jesus ensinou. Nada”.

Confira a entrevista completa abaixo:

Catraca Livre: Como você definiria a sua história de vida em uma frase, até o momento?

Pastora Alexya: o que era sonho, agora é realidade. Porque desde a minha infância, eu percebi que alguma coisa de diferente acontecia comigo. Desde pequena eu tinha um sentimento, uma sensação dentro do meu coração que eu não sabia definir o que era.

Por exemplo: conciliar a minha fé com a minha sexualidade, com a minha identidade. Hoje eu posso. Hoje eu encontrei uma igreja que me acolheu da forma que eu sou.

Outra coisa é a questão da maternidade. O que era sonho de uma vida toda hoje eu vivencio, eu saboreio essa realidade. E principalmente a questão de ser o que eu sou, 24 horas por dia. Uma pessoa humana, com as minhas qualidades e defeitos. Então tudo aquilo que era sonho hoje é realidade.

Outra coisa que era sonho e que hoje é realidade é a aceitação da minha família, das pessoas que realmente me amam. Hoje eu posso experimentar ter essas pessoas do meu lado.

É claro que muitas dessas pessoas que eu amava e que eu pensei que me amavam me abandonaram, não querem mais a minha presença perto delas. Mas ficou de fato quem me ama. Hoje eu posso ter a minha família, ter os meus amigos, ter a minha comunidade de fé porque eles realmente me amam e me aceitam da forma que eu sou.

Você contou ao Uol que a sua infância e adolescência foram difíceis, tanto pela questão de identidade, quanto pela de religiosidade. Quais as maiores dificuldades para uma criança (e depois para um adolescente) que tem esses dois obstáculos (identidade e religiosidade)?

As maiores dificuldades para uma criança, que é um ser em construção, é não ter uma referência daquilo que você sente. Eu lembro que eu buscava essa referência em algum adulto ou adulta para poder me espelhar e não tinha. Sempre morei na área rural de Mairiporã, então não tinha essa referência. Na minha cidade, na década de 80, também não tinha a referência de transgeneridade.

E já na fase da adolescência a coisa se perpetuou porque na escola eu também não tinha a referência. Por exemplo: o menino hétero cisgênero tem a referência do pai dele. A menina cisgênera heterossexual também vai ter a referência da mãe, da avó, da tia, da madrinha… E eu, enquanto menino, não tinha a referência daquilo que eu sentia, da construção da minha identidade. Então aquilo para mim era aterrorizante, porque eu me sentia um E.T., me sentia uma pessoa inferior, me sentia uma pessoa fora dos padrões.

Foram anos de martírio, de uma luta interior, para tentar me enquadrar no sistema heteronormativo de gênero, quando na verdade aquilo que eu sentia também estava dentro da normalidade, porque a condição humana tem uma possibilidade de experiências, e eu não tinha essa referência enquanto criança nem adolescente.

Na escola eu apanhei muito porque era “diferente”, quando na verdade eu não era diferente, eu apenas não condizia com o sistema heteronormativo, mas também não sabia que existia um outro sistema de gênero, de uma outra construção. Foi muito difícil.

Enquanto criança religiosa também. Só que quando a gente é criança, a gente ainda tem aquela pureza de alma e de espírito. Mas quando se chega à fase da puberdade, da adolescência, e a gente consegue raciocinar usando a razão, fica muito difícil porque eu tinha um conflito muito grande.

Eu tinha medo de Deus. E questionava a Deus “por que ele não curava aquilo em mim? Por que não tirava aquele sentimento de dentro de mim? Por que eu era diferente?”. Durante a minha adolescência toda eu rezava, orava, fazia promessa para que deixasse de sentir as coisas que eu sentia. É claro que depois vou entender que não tinha nada de errado comigo. Vou entender que não tinha o quê Deus curar em mim.

Claro que Deus tem que curar muita coisa em mim: orgulho, prepotência, vaidade, autossuficiência, como em todos os seres humanos, mas não a minha identidade, não aquilo que eu sentia.

Você disse também que, ao falar pela primeira vez com a sua família, teve que contar metade da história, dizendo ser gay em vez de ser trans. Isso mostraria, por exemplo, que há mais resistência na sociedade em relação às pessoas trans?

Com certeza. Quando chamei meus pais no quarto para conversar com eles, lembro que eu fiquei ali por quase uma hora, só chorava e a voz não saía. Quando crio forças e começo a falar para meus pais que não era igual aos meus primos, tios, que eu não era igual ao meu pai, lembro que ele me interrompeu, muito nervoso – porque ele demorou a entender o que estava querendo dizer – e foi bem categórico quando disse “não, se você for viado eu até aceito, mas se você se vestir de mulher eu te mato. Isso eu não vou aceitar”.

Naquele momento tive que pensar muito rápido porque tinha muito medo do meu pai, dele não aceitar. Tinha medo de perder o amor dele. Eu me calei. E lembro que a defesa da minha mãe na hora foi uma crise de risos. Ela ria muito, e assim que meu pai deu um murro na porta do quarto e saiu, minha mãe falou “eu já sabia, sempre soube que você tinha algo diferente e eu não vou te abandonar. Vou conversar com o seu pai e ele vai ter que te entender, ele vai ter que te aceitar”.

Mas nem para a minha mãe naquele momento eu consegui falar. Mas depois consegui falar com ela, um tempo depois, falando que tinha uma coisa a mais, que não era só aquilo. Eu na verdade não era gay. Então realmente nas famílias e na sociedade eu percebo que… Não é que ela [a sociedade] aceite o gay. A sociedade parece que está aprendendo a conviver com o gay. Então o gay, embora ainda sofra homofobia, embora ainda apanhe, embora lésbica ainda apanhe, embora lésbica ainda seja estuprada muitas vezes, mas quando se diz que é uma pessoa trans a coisa muda de figura.

É muito mais difícil uma família aceitar uma pessoa trans em relação a uma família que aceita que o filho é gay, porque eles vão dizer “ah, mas você é gay, você não precisa de mudança de prenome, não precisa tomar hormônio, não precisa mudar o vestuário”, quando na verdade eles acham que isso é um capricho nosso, uma brincadeira. É parte de uma construção, é parte da sua identidade. A sociedade ainda não aceita as pessoas transgêneras, elas (as pessoas da sociedade) ainda fazem muita confusão quando o assunto é transgeneridade, elas ainda confundem os termos.

Essa situação com o seu pai mostra o tamanho do impacto da violência na vida da população LGBT, não? Seja ela verbal ou física.

Com certeza. É impactante mesmo, né. A população LGBT, por não estar na conformidade que eles acham que é normal, que é a heteronormativa, eles (a população) vão punir de forma muito dura e cruel as pessoas que não atendem a esse sistema. Principalmente quando falamos de sistema binário de gênero.

A sociedade ainda acha que só existe o homem e a mulher. E hoje nós vamos entender que existe um leque de possibilidades: tem os binários, os não-binários, e por aí vai. Eu recebo muito no inbox pessoas me ofendendo, dizendo que eu mereço morrer de forma cruel, que eu deveria morrer de HIV, que eu deveria morrer em um acidente de carro, que Deus me abomina…

Eu ainda (graças a Deus) não sofri nenhuma agressão física, mas eu não estou impossibilitada de sofrer. Eu posso sofrer, eu posso apanhar e eu posso morrer a qualquer momento porque um fanático, porque uma pessoa que não entendeu nada sobre gênero humano, vai se achar no direito de tirar a minha vida – ou tirar ainda a vida da minha filha, que é uma menina transgênera também.

A sociedade ainda reage de maneira desumana e maldosa com as pessoas LGBTs.

Como conciliar relacionamento, maternidade, religiosidade e identidade de gênero? O que você pretende ensinar aos seus filhos em relação a esses temas?

Eu procuro conciliar da melhor forma: falando de amor, de respeito ao diferente, falando que o diferente não é uma ameaça… Procuro conciliar a maternidade, religião e identidade de gênero da melhor maneira possível e, na verdade, é a mais simples:

É sendo quem eu sou, falando para os meus filhos, para o meu marido, que somos pessoas tão normais quanto qualquer outra, que temos direitos, e também deveres, e que buscamos exercer uma vida [baseada] no respeito, no perdão, no não desistir do outro, procurando ser sinal de Deus para todos aqueles e aquelas que nos procuram, e eu ensino sempre os meus filhos que o diferente não é uma ameaça, que o outro ser humano também tem sentimentos, também tem vida, família, e que ele também merece respeito, merece promoção na vida, e que a gente tem que buscar fazer o melhor.

Na verdade, a minha família não é diferente de nenhuma outra família. A gente enfrenta os mesmos desafios do dia-a-dia. Eu e o meu marido, enquanto casal, enfrentamos os mesmos desafios que qualquer casal hétero, que qualquer casal gay, enfim, que qualquer casal das mais variadas configurações. Eu enquanto mãe transgênera, tendo uma filha transgênera, vou enfrentar os mesmos desafios que qualquer mãe cisgênera, que tenha uma filha cisgênera! Não tem diferença nenhuma.

Na religião é a mesma coisa. Nós vamos enfrentar as mesmas dificuldades, mas sempre com a cabeça erguida, sabendo que a gente está aqui para fazer a diferença no sentido de mostrar para a sociedade que não há nada de errado com a gente. Errada é a sociedade, que é doente e preconceituosa, que é maldosa, que se preocupa com coisas que ela não deveria se preocupar. Ela deveria se preocupar com educação, moradia, em colocar no poder políticos que pudessem de fato ouvir o povo.

A sociedade deveria se preocupar se realmente a democracia está sendo exercida, e não com a forma de vida que as pessoas levam, porque isso não muda nada na vida delas.

O que você, como pastora, acha da intolerância religiosa?

Penso e acredito que a intolerância religiosa é uma contradição imensa. Religião vem do latim religare, ou seja, é o humano que se conecta e reconecta com Deus diariamente. E quando a gente vê religiões promovendo a discórdia, a segregação, a exclusão de pessoas porque elas não estão na conformidade dita por elas que dizem que é a correta, que é a aceita por Deus e pelo cristianismo, automaticamente a religião perde a sua essência, o seu valor.

O cristianismo nesses séculos todos demonstrou uma intolerância contra os LGBTs muito forte, demonstra ainda… [também] contra a religião afro – a gente vê religiões evangélicas demonizando a cultura africana, as religiões de matriz africanas – isso é de tamanha grosseria, de tamanha incapacidade de realmente entender os textos sagrados. Ou seja, uma religião que exclui não entendeu nada do que Jesus ensinou. Nada.

Quando uma igreja evangélica expulsa da sua congregação um jovem porque ele é gay, ou quando expulsam um jovem que se descobre mulher, sendo uma pessoa transgênera, do seu meio religioso, ela não entendeu nada do que Jesus faz, do que ele ensinou. Então a intolerância religiosa, no meu entender, é um dos pecados mais graves cometidos pelas religiões e os seus pastores.

Na Igreja da Comunidade Metropolitana a gente diz que não é religioso. Jesus não quis ser religioso. Ele nasceu judeu, não ficou dentro do templo judeu, andou com aqueles e aquelas que a religião judaica dizia que eram impuros: os coxos, os leprosos, os adúlteros, as prostitutas, foi com essas pessoas que Jesus quis andar, quis estar. Ele enfrentou o sistema religioso para ensinar o amor ao próximo. Ele quebrou todas as regras judaicas.

Ou seja: a intolerância religiosa só produz morte, segregação, opressão. Ela ceifa vidas.

O que você acha de pastores e outras pessoas que evocam a religião para manifestar opiniões?

Esses pastores não têm noção da quantidade de sangue que tem nas mãos deles. Eles não cometeram assassinatos de forma direta, mas sim indireta. O discurso de ódio deles faz com que todos os seguidores de suas igrejas, ditos cristãos, propaguem os mesmos discursos que os pastores, de ódio, de segregação. O discurso deles é feito estritamente feito na base do ódio.

Tem até vídeo no qual um pastor diz que viado tem que levar porrada, tem que pegar de porrete. Esses tipos de discurso promovem um ódio, e além do ódio a morte efetiva. Vidas são ceifadas por causa do discurso desses pastores. Todo sangue LGBT derramado muitas vezes vai ter a sua origem lá na religião. Grande parte desses assassinos, quando você for ver a religião deles, é a evangélica.

Não que os evangélicos em geral sejam assassinos, não é isso. Mas uma característica dos assassinos de LGBTs, quando você consulta, é que eles fazem isso em nome de Deus. Mas como em nome de Deus? Porque eles ouviram esses pastores que usam as grandes mídias para incitar o ódio, a violência e a discriminação diária contra a população LGBT.

Quais são os desafios para a população LGBT?

Os desafios a serem enfrentados incluem respeito, cidadania (principalmente cidadania), promoção social… No caso das pessoas transgêneras, que elas tenham acesso, em toda e qualquer cidade, ao acompanhamento e hormonização, que tenham direito à retificação de seus documentos – porque a maior cirurgia na vida de uma pessoa trans não é somente a cirurgia de redesignação sexual, mas sim a cirurgia na carteira de identidade.

No caso de gays e lésbicas, o direito de se expressar da forma que são… Que haja políticas públicas que sejam de promoção das pessoas da comunidade LGBT. Não é o que acontece hoje no Brasil: a gente sabe que a bancada evangélica barra todo e qualquer projeto de lei, ela impede que a nossa comunidade tenha os seus direitos garantidos… Porque deveres todos nós temos, mas os direitos eles não querem garantir para a gente.

Acredito que o maior desafio também vai na parte da família. As famílias precisam aprender a lidar, aceitar e amar os seus filhos e filhas da forma que eles são. Esses são os maiores desafios: a família, que muitas vezes não sabe entender; os poderes, que não garantem os direitos (ao contrário, tiram esses direitos). Que nas escolas seja sim falado sobre gênero, porque a educação começa na escola, com a criança pequena.

Se a gente tiver esses direitos garantidos, os LGBTs poderão andar a qualquer horário nas ruas sem serem mortos ou agredidos física ou verbalmente, [e poderemos] construir um mundo mais justo e igualitário partindo de um único princípio: o outro é uma pessoa como eu, ele também deve ter os seus direitos garantidos assim como a Constituição garante os meus. Esse é o princípio que deveria nortear todo e qualquer deputado, senador, mas isso infelizmente ainda não acontece.

Quais os seus conselhos para outras pessoas que, assim como você, estiveram e ainda estão em uma situação delicada em relação à sua identidade e religiosidade, assim como você esteve?

Elas devem acima de tudo perceber que Deus as ama e as fez do jeito que elas são. Não tem nada de errado com elas. No meu entendimento, Deus não tem sexo. Mas se nós somos imagem e semelhança de Deus, então Deus é hétero, ele é homo, ele é bi, ele é pan, ele é transgênero… Todas as realidades humanas estão presentes em Deus porque ele é a diversidade em um único ser.

Para essas pessoas, eu digo: não há nada de errado com vocês. É a sociedade que está errada. Não somos diferentes dos demais.

E a construção da nossa identidade passa justamente por isso: de se perceber enquanto seres humanos, de se perceber enquanto pessoas cheias de qualidades, mas também cheias de defeitos, e não somos diferentes. A nossa relação será construída dessa forma, mas isso não é da noite para o dia: isso vai acontecer gradativamente, e ao passo que vai acontecendo vamos nos libertando das amarras sociais, religiosas, dos nossos próprios preconceitos.

Porque muitas vezes nós, LGBTs, temos preconceito contra outros LGBTs, porque criamos paradigmas, formas, porque dizemos que “aquela ou aquele não é mulher ou não é homem”, e muitas vezes a gente se pega com discursos de preconceito.

Que cada um e cada uma possa buscar ser feliz da forma que é, independente do que o outro fala para você.

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