Mulheres que falam para mulheres

Coletivo de mulheres lançam livro sobre a peça realizada apenas para o público feminino para discutir a figura da mulher no dia a dia

Por: Catraca Livre

A peça “Mulher a Vida Inteira: diálogos de atuadoras”, criada pelo coletivo “Atuadoras”, buscou  encenar situações vividas no cotidiano de toda mulher através de depoimentos. O espetáculo foi apresentado somente para o público feminino. “Um grupo de atrizes apostou num espaço entre iguais para proporcionar um clima de reconhecimento, cumplicidade e compartilhamento de histórias”, explica a atriz Daniele Ricieri.  Ela interpreta uma das mulheres na peça e é também uma das coordenadoras do projeto que virou livro “Peça para Mulheres- História e Poesias do Espetáculo Teatral Mulher a Vida Inteira” junto com Maysa Lepique.

As atrizes, de distintas formações, procuraram não se identificar como uma trupe de teatro de mulheres realizando uma peça sobre o universo feminino. Colocaram-se como ativistas políticas que, por meio da arte, uniram-se como um coletivo.

A peça estreou em março de 2008, e fez vinte e seis apresentações itinerantes, visitando lugares como CEUs espalhados pela metrópole, a Associação dos produtores rurais e em duas penitenciárias.

Durante a peça, o público era convidado a criar frases que formaria um poema colaborativo. No fim, a personagem chamada de Cora (referência a poetiza Cora Coralina) lia para o público. Por fim, formava-se uma poesia coletiva recitada no fim da peça. O conjunto desses poemas formou o conteúdo do livro. Seu prefácio é assinado por Maria Amélia de Almeida, Amelinha Teles, coordenadora do projeto de Promotoras Legais Populares e integrante da União de Mulheres de São Paulo.

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A atriz Daniele Ricieri durante apresentação
Créditos: Maira Soares
A atriz Daniele Ricieri durante apresentação

No processo de criação do espetáculo o grupo fez intervenções, entre elas, a Intitulada “Cochicho”, em que cada atriz adotou uma persona feminina em que sussurravam dados estatísticos de violência contra mulher, no ouvido das pessoas que estavam ao redor.

Os próximos projetos a ser realizado pelo coletivo é a produção de um documentário investigativo que busca respostas para a pergunta “O que é ser Mulher em uma Metrópole como São Paulo?” e um projeto de oficina teatral em Penitenciárias Femininas, a fim de dar visibilidade à condição da mulher encarcerada.

Motivadas a partir de diagnósticos e estatísticas sobre o universo feminino, juntas, essas mulheres decidiram que era preciso falar sobre a questão da mulher. Ganharam o prêmio Funarte Myriam Muniz de Teatro, pelo Ministério da Cultura, com patrocínio da Petrobrás e lançam pela editora Esfera, “Peça para Mulheres- História e Poesias do Espetáculo Teatral Mulher a Vida Inteira” hoje na livraria da Vila, da Fradique Coutinho, às 18h30.   Junto ao lançamento, as atrizes irão encenar a peça que virou livro.

O Catraca Livre entrevistou uma das coordenadoras do livro e atriz da peça Daniele Ricieri

Como nasceu o projeto Peça para Mulheres? E, de que maneira ele tomou uma extensão de livro?

Uma das questões centrais debatidas na classe teatral que faz trabalho de grupo, com pesquisa e continuidade é o problema do registro histórico. Como registrar uma obra de arte tão efêmera como o teatro? Antigamente este trabalho era feito pela crítica especializada, no entanto, com o avassalador galope da lógica mercadológica que impera nos jornais, o crítico de teatro virou quase que um crítico de hotel: atribui estrelas às montagens e geralmente faz um texto adjetivando a obra, sem analisar criticamente todo o processo de construção dos espetáculos. Por isso tudo, é prático hoje dos grupos de teatro produzir uma (ou várias) publicações que dêem conta de registrar sua história.

Além disso, durante as apresentações da peça “Mulher a Vida Inteira” uma nova obra de arte era produzida pelas mulheres da platéia por meio da condução de uma das nossas personagens: poesias. Assim, achamos muito importante publicarmos os poemas construídos por seu enorme valor social.

Quais eram as queixas mais frequentes que ouviam do público?

Muitas perguntavam porque uma peça somente de mulheres. E quanto diziamos que apostávamos em um espaço entre iguais para proporcionar um clima de reconhecimento, cumplicidade e compartilhamento de histórias, a grande parte das mulheres adorava.

Dizem que uma apresentação de teatro nunca é a mesma. De todas as peças apresentadas, qual lhe chamou mais atenção. E, qual cena ficou mais marcada para esse público?

Nossa primeira apresentação (sem ser para convidadas) foi para uma platéia de jovens moças/ adolescentes. E elas ficaram encantadas com a cena da Anne Frank, o que nos surpreendeu bastante porque elas riam muito durante esta cena.

Tiramos esta parte da peça de uma das cartas escrita por Anne Frank em seu diário. Nesta carta a menina descreve o seu corpo de mulher, de um modo bem técnico, mas encantado no final. A nossa platéia, embora envergonhada, ficou encantada como Anne Frank.

Como foi apresentar para jovens ligadas a um partido político e jovens adolescentes que vivem em regiões periféricas?

Os dois públicos trazem discussões bem diferentes. Jovens militantes costumam já ter contato com o feminismo e o movimento de mulheres, portanto elas avaliam a peça mais criticamente. A novidade para elas é ver as questões apresentadas por meio da arte. As jovens da escola pública para a qual apresentamos foram percebendo e organizando como se sentiam como jovens mulheres durante a após a apresentações. Dividiam histórias conosco, uma construía o pensamente a partir da fala da outra. Apresentar para as moças é uma delícia porque elas estão desenvolvendo agora a capacidade de organizar racionalmente o mundo em que vivem, e é ótimo poder propor questões por meio da arte.

Como se deu a criação dos poemas presentes no livro? Quais são os planos para disponibilizá-los?

Os poemas foram construídos durante as apresentações. Nossa personagem Cora recebia as mulheres da platéia no começo da peça e pedia uma frase ou palavra para algumas delas. Toda a peça acontecia, e no final, esta mesma personagem voltava e lia o poema construído com a colaboração de todas. Era muito emocionante porque a poesia ficava linda e muito coerente, como se tivesse sido feita por uma só pessoa. As mulheres ficam contentes porque percebiam que elas também poderiam criar novas obras, e criar coisas juntas.

Fale  sobre a apresentação para as presidiárias..

As mulheres encarceradas são o nosso público em maior situação de violência. Fomos por três vezes visitar um dos pavilhoes da Penitenciária feminina de Sant’Ana antes de apresentarmos a peça. Quando chegou o dia da apresentação, as internar nos ajudaram a carregar e montar todo o cenário. Optamos por nos aquecer na frente delas (geralmente a gente se preparava antes da entrada do público) o que foi uma aposta feliz, já que isso aumentou o clima de cumplicidade entre nós. Elas ficaram muito emocionadas durante toda a apresentação.

No final, perguntamos qual cena elas tinham gostado mais e a maioria respondeu que era a primeira cena: do nascimento/ parto de uma menina. É nossa cena mais abstrata e poética e foi a que elas mais gostaram. Achamos que isso aconteceu porque muitas delas não sabem o paradeiro dos filhos, então a violência atrelada a maternidade (por estarem separadas dos filhos) é muito forte para elas.

Confira aqui um poema presente no livro produzido pelo público