Aquarelas lésbicas: ‘mãe, afrosapatão, grafiteira e artivista’

Annie Gonzaga, ou melhor, Ganzala, como ela assina suas artes poderia dizer que sua infância e adolescência foram ótimas, com brincadeiras dessas que até hoje acontecem na periferia de Salvador, no bairro de Saramandaia. Soltar pipa na laje e brincar de bolinha de gude eram suas atividades preferidas. Tudo seria digno de boas memórias, uma criança solta na rua, “misturada” com os meninos, se o bairro não fosse um dos mais perigosos da cidade, a mãe soubesse lidar com o fato de ter gerado uma filha negra e a lesbofobia que sofreu por aparentar o estereótipo “sapatão” fosse mentira.

“Sou filha de pai negro e mãe negra mestiça. Tive uma infância muito violenta porque ela tinha um certo desprezo pela minha pessoa, por eu ser mulher e negra. Desde um puxão violento para pentear o cabelo, agressões físicas, até o ponto de uma tia minha pedir para me criar por que a vizinhança já estava a ponto de chamar o Conselho Tutelar para tomar a guarda dela. Eu tive um irmão que nasceu com a epiderme clara, que era preferido dela, e eu era a desgraça” , conta.

Annie, aos 9 anos, a mesma idade da sua filha, Lila. “Os desenhos eram uma recontação de histórias que transcendia nossa realidade”, conta.
Annie, aos 9 anos, a mesma idade da sua filha, Lila. “Os desenhos eram uma recontação de histórias que transcendia nossa realidade”, conta.

“Mãe, afrosapatão, filha de orixás, aquarelista, grafiteira e artivista”, ela define. Muitos obstáculos foram enfrentados para que hoje ela pudesse viver de arte, gritar aos quatro cantos quem é, de onde vem e para quê veio ao mundo. No seu caminho, foi impedida de exercer sua identidade pela própria família, por amigos; a arte, o racismo, machismo, misoginia e até mesmo ao educar sua filha, Lila.

O processo

“Quando chegou a adolescência, foi um terror, eu me sentia muito estranha, sofria muito bullying. Já me chamavam de lésbica por não ter uma forma muito feminina e, ao mesmo tempo, eu nunca tinha tido uma experiência com meninas. Me sentia muito injustiçada.”

A lesbofobia e o bullying fez com que ela demorasse para exprimir sua afetividade lésbica. Foi logo após a maternidade — e ter se relacionado com dois homens mais velhos, um deles pai da sua filha — que ela compreendeu sua orientação sexual. “Todo esse tempo havia sido uma negação de não querer me enxergar como lésbica, mesmo sendo uma coisa muito visível.”

“Estou resistindo e criando formas de sobrevivência há algum tempo, desde os últimos 500 anos, através de todas as minhas ancestrais”, diz Annie.
“Estou resistindo e criando formas de sobrevivência há algum tempo, desde os últimos 500 anos, através de todas as minhas ancestrais”, diz Annie.

O processo de identificação fez com ela levasse para a arte o que sentia, afinal, a sexualidade entre duas mulheres negras não podia ser expressada em público, segundo a grafiteira. Ela conta que as amigas se afastaram, e a família, com quem ela já enfrentava problemas desde a infância, também não fazia questão de estabelecer uma boa convivência. Só quem ficou ao seu lado foi a tia-avó, que ainda quando criança a resgatou dos maus-tratos da mãe.

“Minha amigas eram heterossexuais, boa parte delas se afastou assim que eu falei dessa minha nova condição e que eu estava me relacionando com uma mulher. Foi um momento muito solitário para o meu processo de criação e comecei a pintar sobre nossa afetividade. Foi a partir disso que eu comecei a grafitar mulheres negras lésbicas nos muros.”

A arte lésbica negra

O embate com a sociedade lesbofóbica era claro para uma artista negra e periférica. Suas artes sofreram um boicote pelos grafiteiros, as ações sob os muros fizeram com que, por algum tempo, Annie deixasse de grafitar, mas também mostraram uma nova habilidade da artista, pinturas em aquarela.

“Amoras”. As aquarelas foram as alternativas para que Annie divulgasse seu trabalho na web.
“Amoras”. As aquarelas foram as alternativas para que Annie divulgasse seu trabalho na web.

“Os grafiteiros começaram a me boicotar apagando meus grafittis, começaram a deixar mensagem de ódio e de ameaça por cima do que eu fazia. Então, eu preferi fazer aquarelas, porque para mim era mais seguro. Nada vale pelos riscos, sabe? Não deixei de grafitar, mas comecei a grafitar de forma mais tranquila. Fazia arte, publicava e tinha um alcance muito maior, era virtual.”

Os grafites da artista foram boicotados também em Saramandaia conhecida como uma das mais racistas e perigosa para as comunidades LGBTQ.
Créditos: Patricia
Os grafites da artista foram boicotados também em Saramandaia conhecida como uma das mais racistas e perigosa para as comunidades LGBTQ.

Além de levar uma mensagem sobre a arte negra e lésbica, Annie alcançou muitas mulheres que não estavam retratadas em nenhum lugar, em que o afeto entre duas pessoas do mesmo sexo e cor nem sequer é citado.

“Eu sinto que a gente fala muito pouco de amor, nós, como mulheres negras, povo preto. É uma coisa de sempre ser guerreira, ser forte, sobre resistir, sobre como o Estado nos massacra, nos violenta, a gente não fala quase sobre amor. A gente acaba reproduzindo muita violência que a gente recebe na família, que a gente acaba passando nos relacionamentos.”

Formas, posições, corpos, cabelos, abraços, beijos. É sobre isso que a artista pinta e leva ao mundo.“Eu falo através da pintura de como eu enxergo o amor, a família, com eu penso o erotismo entre lésbicas negras. Para mim, as relações que eu tive sempre foram de uma relação física forte sexual, espiritual e emocional, em que aprendi muito e houve muita troca.”

Segundo a grafiteira, “Criar uma epistemologia, através de nossas heranças ancestrais, é vislumbrar a utopia identitária negra afrofuturista, diaspórica, re- cognitando nossas cosmologias e identidades”.
Segundo a grafiteira, “Criar uma epistemologia, através de nossas heranças ancestrais, é vislumbrar a utopia identitária negra afrofuturista, diaspórica, re- cognitando nossas cosmologias e identidades”.

Pintar também é uma forma de protesto, mais do que isso, uma maneira de quebrar um ciclo, como ela mesma diz. “O fato de a gente conseguir se amar, quebrar esse círculo de ódio, também é quando a gente fala de relacionamento entre pretos e pretas. A gente quebra e começa a se mirar no espelho de ver o belo no igual, no seu igual, na sua cor”.

Maternidade

Ser mãe lésbica tem questões que vão além da maternidade heterossexual. Dentro de casa, Lila, aos seus 9 anos, vive rodeada de amor e carinho. Da porta para fora, a situação muda.

“Para ela também é muito difícil, principalmente na escola, não pelos colegas dela, mas pelas próprias educadoras. Já passamos por várias escolas em que ela tinha um tratamento diferenciado por ser filha de mãe lésbica. Bem no sentido de que: se escolheu isso, por que foi ter filho? Como se ela fosse uma criança com o futuro condenado por ter uma mãe lésbica! A gente tá o tempo todo mudando, atrás de escolas que trabalhem com diversidade, que tenham o respeito com pessoas que fogem da norma.”

Annie e Lila em uma das suas viagens.
Annie e Lila em uma das suas viagens.

Ao mesmo tempo, a criação de Lila também teve impactos da família. Em uma tentativa de aproximação da mãe, Annie enfrentou mais uma vez uma situação de violência. “Quando eu tive minha filha, mandei uma carta para ela falando que o pai era negro, e ela disse que ‘não teria neta macaca, que eu nem ao menos fiz questão de limpar a raça’. Decidi que ela não seria avó para a minha filha.”

Através de suas artes o “artvismo” da grafiteira chegou até o “Encontro Lésbico Feminista de Abya Yala, na Colômbia, em 2014.
Através de suas artes o “artvismo” da grafiteira chegou até o “Encontro Lésbico Feminista de Abya Yala, na Colômbia, em 2014.

Confira o trabalho da artvista: https://www.facebook.com/annieganzala/.