“Não são valores sociais que vão me definir como mulher”

Conversamos com Maria Clara Araujo, que aos 18 anos já é uma voz forte na militância pela liberdade de gênero e pelos direitos das pessoas trans. Falamos sobre preconceito, transfobia, feminismo e educação, entre outras coisas

Por: Felipe Blumen

“Ser mulher não é calçar os nossos sapatos.” Assim diz a pixação em um banheiro feminino da Unicamp. A frase, que tem a companhia de outras do tipo (“Não deixem os machos ocuparem nossos espaços”) em paredes e portas próximas, critica o fato de mulheres trans usarem aquele espaço. Representa também a transfobia, o preconceito contra pessoas trans, latente da população brasileira.

“Eu pesquiso muito, mas tento não ser acadêmica. Eu quero que a minha vivência fale mais alto”, diz Maria Clara, que colabora na revista virtual Capitolina e participa ativamente das redes sociais.

“Transfobia é algo natural da sociedade. Todo mundo tem pensamentos transfóbicos. Eu tinha, você tem. Isso fez parte da nossa criação como pessoas. Por isso é importante reconstruir esse conceito.”

Quem defende isso é Maria Clara Araújo, uma garota trans que, aos 18 anos e em vias de prestar vestibular, se tornou uma das principais militantes do transfeminismo. Colaboradora da revista online Capitolina, Maria Clara divide seu tempo entre os estudos – pretende cursar Serviço Social no ano que vem – e os debates, palestras e rodas de conversa dos quais participa.

Entre um compromisso e outro, ela topou conversar com o Catraca Livre e falou algumas coisas sobre preconceito, insegurança, transfobia, feminismo, e transgêneros na escola, entre outros assuntos. Confira como foi a entrevista.

Catraca Livre: Quando você resolveu virar militante?

Maria Clara: Eu nunca quis ser militante. Participava de fóruns na internet sobre temas variados, mas quando eu me assumi trans e comecei a falar sobre minha vida, minhas inseguranças e tudo que eu passava, fiquei mais conhecida. Foi na época que fiz o documentário “Transparência”, em que eu falo sobre minha vida, sobre o que é ser trans. Isso deu uma ótica para as pessoas, que chegavam e me falavam que eu as estava influenciando.

Foi quando você conheceu o transfeminismo? Como isso aconteceu e o que mudou na sua vida?

Eu caí de cara. Lembro que entrei num grupo de facebook bem antigo, que era de um blog de umas amigas minhas, e comecei a ler. Comecei a pesquisar e escrever o que pensava sobre isso. Para mim, o transfeminismo foi um espaço no qual eu pude finalmente falar, ser vista e ser ouvida enquanto pessoa. Depois que eu conheci o movimento, mudei bastante. Tinha certos conceitos, certas inseguranças que eu pude destruir ou manter para ser a Maria Clara que eu sou hoje.

E como é ser uma voz bastante ouvida com apenas 18 anos?

Eu tenho que ter um cuidado maior com o que eu defendo. Quanto maior a minha popularidade, maior também tem que ser minha responsabilidade. Por exemplo, eu prefiro ter uma escrita mais acessível. Eu pesquiso muito, mas tento não ser acadêmica. Eu quero que a minha vivência fale mais alto. O engraçado é que as pessoas me encontram pessoalmente e esperam uma postura séria, mas eu sou uma menina de 18 anos que vive uma vida normal de sair, brincar e fazer piada.

Você acabou de sair da escola e está prestes a prestar vestibular. Como é ser trans no ambiente acadêmico?

A escola como um todo, desde a base até a academia, não é um espaço que abre as portas para as pessoas trans. Ele não entende nossas demandas, é um espaço de opressão. Eu tenho uma amiga que é trans e tem a maior nota da sala. Ela tem uma professora que fala para os outros alunos ‘Vocês viram? Mesmo ela sendo trans ela tem as notas mais altas’. Eu tenho planos de ser professora universitária, mas tenho também consciência das barreiras que serão postas para mim.

E como o ambiente pode ser mais respeitoso e igualitário?

Tudo é questão de reeducação. O espaço escolar tem que reconhecer que ele tem preconceitos, pois só reconhecendo é possível reconstruir. O primeiro passo é reconhecer que a transfobia é algo natural da sociedade. Todo mundo tem pensamentos transfóbicos, incluindo eu e você. Isso fez parte da nossa criação como pessoas. Por isso é importante não só ajudar no ingresso de mais pessoas trans nesses ambientes, mas também apoiar. Porque se o entrar já é uma luta, o permanecer é pior ainda.

Fora da escola, da universidade, qual a situação? O que é ser trans no Brasil hoje?

É você lidar com penalizações de todos os lados possíveis. Nós somos uma parte da população que é colocada atrás da porta e que só é vista quando morta, porque vamos parar no noticiário. E isso é uma realidade muito dura, porque vivemos à parte dos direitos. Mas felizmente existem movimentos sociais que lutam para nos tirar da marginalização, apesar de ser difícil.

Mas mesmo dentro dos movimentos sociais, como no feminismo, não há transfobia?

O feminismo tem muitas vertentes – e o transfeminismo talvez seja uma das maiores, se não for a maior. Isso faz com que algumas pessoas que tenham pensamentos mais individualistas criem atritos. Mas o que importa é que os ganhos são maiores do que os atritos. O feminismo, como um todo, é um movimento com um mesmo propósito: o empoderamento e a emancipação das mulheres. A partir do momento que isso está sendo feito, não precisamos mais olhar para os atritos. Isso tira o foco da coisa.

No dia 20 de novembro, quando se comemoram o Dia da Consciência Negra e o Dia Internacional da Memória Trans, Maria clara viralizou nas redes sociais com uma demonstração de orgulho. “São minhas peculiaridades que me fazem mulher.”

Nesse contexto, qual o futuro que você vê para as mulheres trans?

Fatos como o uso do nome social e o uso de banheiros contribuem, mas a marginalização ainda é latente. Hoje, 90% das trans ainda se prostituem. Infelizmente se tornou um ciclo natural: a menina se assume, é colocada pra fora de casa e se vende para pagar as contas. Está havendo mais respeito, mas ainda é pouco. Só 95 pessoas pediram alteração do nome social no Enem. Estamos dando espaço, mas para mudar a situação é preciso uma política publica que vise tirar essas meninas da rua e dar uma oportunidade. Por enquanto, ainda parece utópico falarmos de uma melhora real.

E qual futuro você vê para você mesma?

Hoje eu sou uma mulher que ainda tem suas inseguranças, mas que sabe que não são valores sociais que vão me definir como mulher. Percebi que são minhas peculiaridades que me fazem mulher, e não as características que a sociedade consagrou. Agora eu tenho planos de entrar em alguma universidade e tocar minha vida universitária para me tornar professora. A academia vai ter que me engolir.