Projeto incentiva leitura e produção de resenhas entre presos

Com incentivo à leitura, projeto Resenha Livre busca desconstruir o estigma em relação aos presos por meio da literatura

Editora Carambaia estimula a leitura entre detentos em presídio no interior de São Paulo
Editora Carambaia estimula a leitura entre detentos em presídio no interior de São Paulo

O hábito da leitura não está entre os mais populares em nosso país. Pesquisa recente sobre o tema indica que o brasileiro lê menos de cinco livros por ano. Essa média muda radicalmente, porém, se o público analisado for o dos presidiários. Na infinitude das palavras, essas pessoas encontram alternativa para viver o mundo do outro lado do muro: detentos leem nove vezes mais que a média nacional.

Uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) permite aos presos, além da oportunidade de leitura dos mais variados títulos, produzir resenhas das obras – cada resenha é avaliada por uma comissão e pode resultar em quatro dias a menos da pena.

Nesse contexto nasceu o projeto Resenha Livre, onde essas sinopses e análises ganham vida e voz em uma iniciativa organizada pela agência Artplan em parceria com a Editoria Carambaia. A ideia é baseada em dois pontos: apoiar a leitura a produção de resenha entre os detentos e desconstruir o estigma negativo em relação à população carcerária brasileira.

Para isso, inúmeros exemplares da editora foram doados para o Centro de Progressão Penitenciária de Hortolândia, onde a educadora Elisande de Lourdes Quintino realiza um trabalho que vai desde rodas de leitura à produção de textos entre os detentos. “Num momento em que a intolerância e a segregação parecem ganhar força, achamos importante apoiar um projeto de inclusão, principalmente para um dos grupos mais marginalizados social e culturalmente”, ressalta Fabiano Curi, Editor da Carambaia.

Pesquisa sobre leitura no país indica que presidiários leem 9 vezes mais que a média nacional
Pesquisa sobre leitura no país indica que presidiários leem 9 vezes mais que a média nacional

Os textos produzidos por eles foram utilizados em diversos materiais de comunicação da editora, como anúncios de revista, pôsteres em livrarias, posts para redes sociais, spots de rádio, marcadores de livros, entre outros materiais.

Para aprofundar um pouco mais a questão da leitura nos presídios – tema que nos últimos dias ganhou destaque com a polêmica envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os supostos 21 livros lidos em dois meses – confira a conversa que tivemos com os idealizadores do projeto Marcos Abrucio, diretor de criação da Artplan e Elisande de Lourdes Quintino, responsável pelo programa de  resenhas literárias chamado “Leitura Liberta”, criado há cinco anos em Hortolândia.

Como nasceu a ideia do projeto?

Marcos Abrucio – Pesquisamos alguns dados de leitura no Brasil e descobrimos que os presos leem muito mais do que a média do resto da população. Quando vimos algumas dessas resenhas, percebemos que a imagem que as pessoas têm dos presos, de que eles são seres brutos, sem possibilidade de recuperação, poderia ser equivocada. Pensamos então em usar essas resenhas na comunicação da Carambaia. Para mostrar que se trata de uma editora para quem é extremamente ligado aos livros, e também para mostrar que os presos são seres pensantes, críticos e sensíveis.

Foi muito difícil viabilizar o projeto nos presídios? Como foram as conversas?

Marcos Abrucio – Ao contrário do que possa parecer, não tivemos nenhum problema para viabilizar o projeto no presídio de Hortolândia. Lá, a professora Elisande organiza há algum tempo uma espécie de “clube do livro”, em que os presos leem e fazem resenhas de diversas obras. Talvez por já existir essa iniciativa ali, fomos muito bem recebidos.

Hoje, principalmente no mundo digital, há muita intolerância e preconceito com esse assunto. Como a agência trabalhou o tema? Como foi a recepção do público e como lidar com os comentários negativos e possíveis agressões nas redes?

Marcos Abrucio – O público da Carambaia, formado por pessoas que amam os livros e que (imagino eu) ouvem e respeitam vozes diferentes e dissonantes, recebeu muito bem a ideia. Até agora não vimos nos canais da marca nada que não fossem elogios e reações emocionadas à nossa ação. Conforme o projeto foi sendo compartilhado, em especial por perfis públicos que não têm a ver diretamente com literatura, nos deparamos com algumas doses de preconceito, mas no geral o saldo é extremamente positivo.

Qual foi sua reação inicial ao receber a proposta de realizar esta ação (Resenha Livre)? Foi difícil viabilizá-la?

Elisande de Lourdes – Vi nesta proposta, do Resenha Livre, a oportunidade de mostrar o bom trabalho e os resultados positivos do projeto. A dificuldade consistiu nas autorizações necessárias para a viabilização do documentário, importantes para a garantia da privacidade dos participantes, mas quando houve a aprovação, foi muito tranquilo, pois as oficinas ocorreram normalmente com a realização das filmagens e entrevistas. A participação nas oficinas e a leitura dos livros pelos alunos foi muito tranquila. A unidade prisional facilitou a entrada e os trabalhos desenvolvidos pela equipe do documentário e que esta acompanhasse sem problemas as atividades desenvolvidas.

Por que são raras ações deste tipo no nosso país? Quais as principais burocracias e dificuldades?

Elisande de Lourdes – É necessário muito empenho da unidade prisional e persistência de quem se propõe a realizar projetos como este dentro de uma unidade prisional. É bem mais fácil priorizar segurança e disciplina.

A capacitação constante dos profissionais que trabalham nas prisões é outro desafio, para criação e continuidade dos projetos. A finalidade da prisão é a ressocialização, porém, apesar dos dispositivos legais, a oferta como trabalho e educação ainda não atinge todos os presos. A oferta é limitada devido à poucas vagas de trabalho e falta de estrutura.

No papel de educadora, como você vê a importância de um projeto como este?

Elisande de Lourdes – É fundamental a viabilização de projetos de leitura nas unidades prisionais,  muitos presos realizam leitura de livros para ocupar o tempo, sair do ócio, independentemente do regime em que estão inseridos.

Como já apontado em diversos estudos, entendo que a literatura promove a aprendizagem, a difusão de conhecimentos, o lazer, a curiosidade, a possibilidade de enxergar o mundo de forma mais ampla e reflexiva, trazendo muitos benefícios como: aumento intelectual, de conhecimento, de vocabulário, de visão de mundo, além de fazer com que a pessoa em privação de liberdade conheça outros lugares, culturas, fatos históricos e sociais. Incentiva que o leitor se coloque no lugar do outro, fator importante para refletir os motivos que o levaram para a prisão, ações importantes para a ressocialização.

Como os presidiários reagiram ao saber que fariam essas resenhas literárias? Como isso alterou não só a rotina mas a esperança e auto estima dos presos?

Elisande de Lourdes – Os alunos se mostraram interessados em participar do documentário Resenha Livre, podendo falar sobre a influência da leitura na sua permanência intramuros. Não houve alteração da rotina, com relação às atividades realizadas, porém foi necessário fazer pesquisas sobre os assuntos abordados pelos livros.

Os temas abordados pelos títulos estavam muito próximos da realidade em que vivem, pois as narrativas partiam da visão de mundo de homens que lutaram na guerra, estavam doentes e angustiados com as escolhas de vida, a visão de pessoas comuns. Isso facilitou bastante a reflexão e a escrita da resenha.

Possibilitou a pesquisa sobre os autores, fatos da guerra, emprego e relacionamento com as pessoas e com o mundo, minha e dos participantes.  Tiveram críticas negativas também, pois as escolhas feitas pelos personagens incomodaram a muitos.

Houveram relatos como:“Professora, nós já vivemos muitas dificuldades aqui e em nossa vida, livros como esse (Corações Cicatrizados de Max Blecher) deixam a gente mais pra baixo”; “O personagem do livro é muito depressivo, não gostei do livro”;

Para muitos participantes, foi um choque de realidade. Refletir sobre a realidade é fundamental para os privados de liberdade.

Que balanço você faz do projeto até o momento?

Elisande de Lourdes – No caso do centro de Progressão Penitenciária de Hortolândia, ao analisar este tempo vejo o quanto a oferta deste projeto é importante e tem promovido a remição de muitos dos participantes.

Tive que ampliar a oferta, abrindo mais um grupo, pois a procura é alta dentro da unidade. Mensalmente são cerca de 50 participantes e por volta de 40 fazem as resenhas. Isto aponta que eles valorizam o projeto, estão vendo os resultados positivos através da aprendizagem e das remições.

Como foi feita a escolha dos livros a serem resenhados?

Elisande de Lourdes – Para o documentário, os livros foram selecionados pela Editora Carambaia, tendo em vista o gênero da unidade prisional- masculino.

Há a possibilidade do projeto ter uma sequência, sendo levado a outros presídios pelo Brasil?

Elisande de Lourdes – A metodologia desenvolvida partiu da realidade dos participantes, homens e mulheres privados de liberdade, e é de fácil aplicação, e possibilita que a equipe técnica participe das atividades de leitura desenvolvidas, que a sociedade contribua com palestras e oficinas e a Vara de Execuções Criminais acompanhe em tempo real o desenvolvimento do projeto.

Acredito que sim, desde haja vontade da unidade prisional em realizar o projeto e que seja designada uma pessoa para realizar as oficinas. Esta mesma estrutura já é replicada na Penitenciária Feminina de Campinas, com cerca de 20 participantes.