Como um projeto tem transformado a vida de empreendedores LGBTs

Conheça exemplos de negócios idealizados ou impulsionados pela ONG Micro Rainbow

Há pouco mais de três meses, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Gurupi, em Tocantins, indenizou o funcionário de uma empresa no valor de R$ 5 mil reais por danos morais. Segundo testemunha, a sexualidade da vítima era constantemente alvo de ofensas no ambiente de trabalho, sobretudo, em frente aos colegas.

No país que mais mata LGBTs no mundo: 1 a cada 25 horas, a LGBTFobia se manifesta nas salas de aula, dentro de casa, no estádio de futebol, nas ruas e, sobretudo, nas empresas.

Em um panorama marcado pela exclusão e marginalização desses grupos, sobretudo travestis e transexuais – onde uma em cada cinco empresas se recusa a contratar LGBTs – o que muitos gestores e líderes ainda não entendem é a importância da inclusão na rotina do escritório: seja na produtividade e até nas relações interpessoais.

Diversidade e resultados 

De acordo com um estudo da McKinsey, consultora norte-americana especializada no assunto, há uma correlação entre diversidade na liderança e melhores resultados financeiros. Logo, as empresas com maior diversidade de gênero tinham, em média, 15% a mais de chance de ter resultados acima da média para o setor.

Transformando sonhos em empreendimentos no RJ 

Neste caminho, um trabalho realizado na região metropolitana do Rio de Janeiro chama atenção para a necessidade de inclusão e capacitação profissional nos 21 municípios do estado fluminense.

Desenvolvido em parceria com a ONG Grupo Arco Íris e a Positive Planet Brasil, e com financiamento da União Europeia, o projeto britânico Micro Rainbow Brasil já atendeu 164 pessoas LGBT em situação de vulnerabilidade social, entre as quais 81 se formaram no curso de empreendedorismo e 46 concluíram cursos de qualificação profissional nas áreas de gastronomia, hotelaria e moda.

Confira exemplos de negócios idealizados ou impulsionados pela ONG Micro Rainbow:

Para debater o assunto, conversamos com Lucas Paoli, Clarisse Kalume e Ivana Ribeiro, que ajudam a desenvolver os projetos organizados pela Micro Raibow.

Na entrevista, eles falaram sobre como as atividades estão ajudando os moradores da região – que hoje protagonizam uma nova realidade econômica e social na baixada fluminense e região metropolitana.

CL: Ainda que 75% das empresas no Brasil proíbam a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual, 61% dos LGBTs omitem assuntos relativos à sexualidade no ambiente de trabalho.

Como este contraste é aplicado na rotina dos moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro, levando em conta o cenário LGBTfóbico e excludente da sociedade brasileira?

Micro Rainbow> A própria pergunta já contém elementos indicativos para a reflexão. 75% das empresas no Brasil proíbem a discriminação, mas elas estão preparadas para contratar e acolher funcionários LGBT? As proibições e amparos legais não são suficientes em si sem uma regulamentação séria e uma profunda transformação da cultura institucional. Embora tenhamos leis progressistas e igualitárias no Brasil em relação a gênero e orientação sexual ainda vivemos em uma cultura bastante machista, homofóbica, transfóbica e racista. Isso exclui, na prática, segmentos inteiros da sociedade do mercado de trabalho. No caso da população LGBT essa exclusão é muito grave e se manifesta de muitas formas.

Como minha empresa pode ser inclusiva e acolhedora? 

Para falar sobre a contratação de um profissional transexual, a advogada trabalhista Dra. Maria Lúcia Benhame, que há mais de 30 anos atua na área, destaca algumas questões legais que envolvem o tema e sugere dicas:

Antes de tudo, a empresa deve respeitar a identidade da pessoa, ainda que ela não tenha feito cirurgias e/ou mudado a documentação civil.

Sendo assim, por lei, em toda documentação é obrigatório que a empresa use o nome civil da pessoa, mas crachá, e-mail, nome na mesa ou qualquer documentação que não seja um documento oficial como, por exemplo, INSS e ficha de registro, é possível usar o nome social. Vale lembrar que empresa e colaborador podem oficializar estas condições através de um contrato onde é dito que o empregado opta pela utilização do nome social e que ele será usado em toda documentação que não se enquadre nas questões legais.

No caso dos banheiros, o ideal é o investimento em ambientes fechados. Vale lembrar que ser franco com o funcionário também é válido. O contratante pode questionar qual opção é mais confortável para o contratado e sugerir o uso de banheiros sociais, por exemplo, pode ser uma alternativa.

Além disso, a empresa precisa ter um conhecimento muito grande do seu ambiente cultural. Legalmente a discriminação é proibida. De acordo com a lei 9029, que fala sobre atos de descriminação, a empresa não pode tratar com indiferença um funcionário, seja por sua opção sexual, religiosa, por problemas de saúde ou por qualquer outra coisa. Isso antes, durante ou termino do contrato de trabalho.

Ao lado e para proteção destas questões legais, para que a empresa não seja responsabilizada por um ato discriminatório de um empregado dela que será um preposto e, portanto, ela responderá civilmente pelos atos de seus empregados, e para ter uma diversidade real entre seus colaboradores, ela deve ter um trabalho cultural de aceitação desta diversidade antes. Preparar o ambiente e fazer a diversidade ser verdadeira e vivenciada por todos.

Para muitas lésbicas, gays e bissexuais, a manutenção no trabalho somente é possível ao custo de “omitir” a própria sexualidade, o que implica uma série de privações na sociabilidade, bem-estar, autoestima e mesmo na produtividade do funcionário. Entre as principais razões apontadas para esta omissão são o medo da rejeição e da interferência negativa na carreira e até mesmo o medo da demissão. Além disso, é quase unânime o relato de piadas e brincadeiras preconceituosas no ambiente de trabalho. Apenas para se ter uma ideia, temos entre os participantes do projeto Micro Rainbow Brasil relatos de uma carreira de 20 anos onde nenhum colega – nem os mais íntimos – souberam da orientação sexual da pessoa. Vinte anos sem poder levar o companheiro para uma festa da empresa ou apenas ter uma foto da família na mesa do trabalho. Vinte anos filtrando cada diálogo 8h por dia para ninguém perceber que você é homossexual.

Para as travestis e pessoas trans o quadro é ainda pior. Praticamente não existem oportunidades formais de trabalho. E quando existem normalmente a pessoa passa por constrangimentos e humilhações inomináveis, como não conseguir usar o banheiro durante o expediente (por não ser aceita nem no toilette masculino nem no feminino), além da questão super sensível do nome social, que nem sempre é respeitado pelas empresas. Esse é o tipo de opressão rotineira que funcionários heterossexuais jamais sentirão na pele.

A rejeição institucional de pessoas trans já inicia na escola e na família, privando esse grupo de acesso adequado a formação e mesmo de um lar na adolescência, o que as/os abriga a se sustentar desde muito cedo normalmente em condições precárias de trabalho. Esse quadro tem sujeitado historicamente a população LGBT ao empobrecimento, desemprego e exposição à violência. Nossa pesquisa “Pessoas LGBT vivendo na pobreza no Rio de Janeiro”, de 2015, mostra como isso ocorre no Rio, mas essa tendência, infelizmente, é mundial. Saiba mais: http://goo.gl/ehwvIT

CL: País que mais mata travestis e transexuais no mundo, a violência contra a população T no Brasil vai muito além das mais de 600 mortes ocorridas em seis anos.

Levando em conta que 90% do grupo, ainda hoje, recorre à prostituição como fonte de sobrevivência, de que o forma o programa de empreendedorismo LGBT está mudando esta realidade ?

Micro Rainbow> Um dos principais eixos de ação do Projeto Micro Rainbow Brasil é o apoio aos LGBT empreendedores. Oferecemos uma formação básica que contempla todos os aspectos importantes para o empreendedor, como marketing, finanças e opções de formalização. Pós curso, oferecemos acompanhamento por meio de parceiros que realizam mentoria para novos empreendedores. A seleção para o curso prioriza pessoas que já possuem um negócio ou tenham uma ideia já bem delineada do que pretendem implementar.

Nosso curso é aberto para LGBTs em geral, mas, tendo em vista a violenta desigualdade que afeta pessoas transgêneras no Brasil, as priorizamos sempre na seleção.

Numa sociedade em que as pessoas transgêneras comumente tem baixa escolaridade por conta do preconceito sofrido na escola que leva à evasão precoce sobram poucas chances de concorrer por boas vagas no mercado formal de trabalho. A transfobia também afeta as relações com possíveis empregadores.

Por isso, a prostituição acaba sendo uma das poucas possibilidades de geração de renda. Nosso objetivo não é combater a prostituição, mas oferecer outras possibilidades de trabalho. Muitas travestis e mulheres trans já realizam algum tipo de trabalho autônomo em condições desestruturadas. Nosso trabalho é desenvolver essas potencialidades para que elas consigam retirar seu sustento e crescer como empreendedoras, podendo inclusive, empregar outras pessoas trans.

Em nossa última turma tivemos como alunas um grupo formado por mulheres trans que desenvolveu um projeto de costura para gerar renda e capacitar outras mulheres trans e travestis. Elas estão produzindo bolsas e comercializando bolsas e outros produtos num pequeno ateliê coletivo. Três delas, Ivone, Alana e Evelym fizeram o curso para aprender ferramentas de gestão.

Outra aluna, Andrea Brazil, que além de cabelereira e maquiadora, também revendia roupas, passou a investir em seu talento de estilista e em consórcio com uma costureira que estava fora do mercado de trabalho, começou a produzir as próprias peças para venda. Tivemos também Amanda, que possui um foodtruck de caldos em Inhaúma. E Igor, um homem trans que desenvolveu durante o curso sua marca de brownies, a Duigu.

CL: Após três anos de atuação no Brasil, e quatro turmas de potenciais empreendedores formadas, quais são os principais resultados do projeto ? É possível afirmar que o curso promove a criação de um nicho de atividade econômica LGBT na região?

Micro Rainbow>Até o momento, já formamos mais de 80 empreendedores LGBT, dos quais 53 abriram ou expandiram seus negócios após a participação no curso. A maioria deles apresentaram uma melhoria objetiva de sua condição socioeconômica a partir da aplicação dos aprendizados do curso em suas próprias empresas.

Indubitavelmente, as melhorias na renda foram um dos resultados mais diretamente mensuráveis na vida deles. Outra questão importante são as estratégias de defesa contra a violência homo e transfóbica forjadas a partir dessa ascensão econômica nos espaços públicos, privados e na esfera doméstica/familiar. Muitos de nossos alunos relataram que se sentiram mais respeitados em suas comunidades e bairros após abrirem seus negócios e se tornaram exemplos positivos para outros LGBTs. O empoderamento econômico também promoveu reencontros, pedidos de desculpas e a reconstrução de laços afetivos, principalmente com familiares, que passaram a respeitar sua orientação sexual e identidade de gênero.

Para além dos benefícios profissionais e financeiros, o simples fato de se sentirem contemplados por um projeto de inclusão LGBT produziu efeitos inestimáveis sobre a autoestima, orgulho e sentimento de pertencimento entre eles.

O convívio e empatia com os demais grupos e causas da comunidade LGBT é um ponto alto nos relatos, especialmente a solidariedade às pessoas trans. A formação espontânea de redes de apoio mútuo foi um desdobramento importante do projeto, criando círculos virtuosos de fomento a mercados LGBT e priorizando a contratação de serviços e funcionárias(os) LGBT na expansão de seus negócios.

É importante observar que muitos dos nossos alunos já atuavam como autônomos no mercado de trabalho, mas não gerenciavam seus negócios de forma organizada, e principalmente não se enxergavam como empreendedores. O que antes consideravam uma forma imediata de sobrevivência, um bico ou um negócio de passagem até que aparecesse outra possibilidade se transformou no empreendimento da vida, que dá o sustento, mas também o orgulho e o sentido do seu saber e fazer. Essa identidade empreendedora não foi criada pelo curso, mas foi sendo desvelada no decorrer das aulas por elas (eles) mesmas(os). Para muitos alunos, era o primeiro contato com um ambiente profissional completamente acolhedor de suas orientações sexuais e identidades de gênero. E, nesse espaço, eles se fortaleceram ou se descobriram empreendedoras(es).

Entre os tipos de negócios, estão profissionais que oferecem os mais variados serviços e produtos, para os mais variados segmentos de mercado consumidor, desmistificando a ideia de que pessoas LGBT ficam restritas ao setor de moda, artes e estética. Também anunciamos esses empreendedores em nossas mídias sociais e outros meios de divulgação, bem como apoiamos a criação de redes entre eles. Inclusive, dois dos nossos primeiros alunos criaram a Pink At Work, uma plataforma online de cadastro de empreendedores LGBT.

Dessa forma, podemos dizer sim que o projeto contribuiu para o fomento de um nicho de mercado LGBT na região. Mas esse nicho não é restrito à comunidade LGBT, haja visto que a maioria dos alunos não fazem distinção de público-alvo na oferta de seus produtos e serviços. Nosso apoio na formação dessa rede de produção e consumo procura apenas dar oportunidades concretas de trabalho e renda para um grupo historicamente excluído e socialmente marginalizado.

E ao fazê-lo, acreditamos que podemos equilibrar minimamente a balança que desfavorece enormemente pequenos empreendedores LGBT, que, em geral, possuem uma enorme dificuldade de acesso ao mercado consumidor, seja pela dificuldade de competir com grandes empresas em termos de marketing e divulgação, seja pela falta de espaços públicos de comercialização, ou pela própria homo e transfobia.

Acompanhe nossa série especial sobre o #EmpreendedorismoReal. Nela, você encontra dicas de especialistas para abrir seu negócio e histórias de quem já se tornou um empreendedor.