‘Viver de arte é um ato político’, diz Fabiana Cozza sobre novo CD
A cantora paulistana Fabiana Cozza apresenta um olhar completo – e complexo – a respeito do samba e da realidade sociocultural brasileira. Com quase 20 anos de carreira, Fabiana é considerada uma das intérpretes mais importantes da música nacional.
Seu último lançamento, o álbum “Partir”, aconteceu em junho. O trabalho acumula 14 faixas produzidas pelo violonista Swami Jr. e composições de autores da geração de Fabiana, como João Cavalcanti, Tiganá Santana e Sérgio Pererê. A Bahia foi a principal inspiração para o trabalho, solo brasileiro onde aportaram os primeiros navios negreiros.
Entre os destaques do disco estão “Não Pedi”, da parceria entre Roberto Mendes e Nizaldo Costa e que traz a levada do Recôncavo Baiano; “Velhos de Coroa”, de Sérgio Pererê, exemplo da evocação da ancestralidade africana; “Chicala”, de João Cavalcanti, ressaltando o semba de Angola; “Seu Moço”, composta por Roberto Mendes e Hermínio Bello de Carvalho, é uma exaltação a Santo Amaro da Purificação; “Le Mali Chez la Carte Invisible” e “Mama Kalunga”, ambas de Tiganá Santana, representam os traços culturais e históricos que ligam o Brasil à África.
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O disco ainda propõe temáticas inovadoras. Sem abandonar o contexto da religiosidade e sincrestismo – recorrente na escolha de repertório de Cozza -, o trabalho coloca as causas sociais em torno das diásporas africanas em pauta e expõem a complexidade do constante partir.
Em entrevista concedida ao Samba em Rede antes de subir ao palco do Auditório Ibirapuera, no sábado, dia 12 de setembro, Fabiana Cozza falou sobre as temáticas e novas sonoridades presentes em “Partir”:
É possível datar quando o samba entrou na sua vida?
Eu não tenho esse momento, ele sempre esteve presente. Não tive um despertar: eu nasci no samba, é diferente.
Acho que meu olhar foi muito apurado por conta desses encontros que aconteciam no fundo do quintal da casa da minha avó, na própria quadra do Camisa. Isso fez com que eu aprendesse muito através da convivência, relações de hierarquia, solidariedade e de belezas que ficam subliminares.
Outra questão importante que o samba traz para mim é estar e conviver com pessoas que têm situações de vida muito diferentes; digo isso no aspecto social, econômico e étnico. É isso que me constitui.
A história deste álbum começou em 2011, com a ideia de um CD apenas de músicas de Roberto Mendes. O projeto não vingou, mas de que forma a experiência em Santo Amaro da Purificação, terra do compositor, puxou o conceito de “Partir”?
Quando o Roberto veio para São Paulo e me convidou para participar do disco dele, ele me apresentou as composições e disse que precisava de uma intérprete para as canções dele. Na época, o projeto não vingou; no entanto, fui aprendendo e percebendo de que maneira eu poderia contribuir para a obra deste grande compositor.
Mais tarde, a ideia de fazer um disco que contemplasse a maneira como eu venho escutado músicas no mundo veio muito com a ajuda do Swami – diretor e produtor do disco. A grande pergunta era: vou fazer o “Partir” partindo de onde? E a resposta veio imediata: daquilo que já esta em mim, que é a Bahia.
Portanto, a viagem para Santo Amaro me ajudou a mergulhar um pouco mais na vivência daquele espaço e daquele lugar. Foi muito importante sair à campo, conseguir se misturar e incorporar de fato aquela história.
O que você experimentou de diferente nesse período? Alguém que você passou a ouvir se tornou influência para o seu trabalho?
Esses padrões que as pessoas estabelecem e julgam como bons – eu nunca quis me deter a isso. Eu sou aquele tipo que gosta da milésima quarta frase, daquela que não foi dita. Busco perceber e conhecer essas pérolas, esses talentos. Isso me ajuda muito a chegar em parceiros de trabalho maravilhosos.
O álbum “Canto Sagrado”, que faz homenagem a Clara Nunes, estabelece um diálogo com a religiosidade, contemplando a mitologia do sincretismo. No álbum “Partir” você também incorpora essa temática, no entanto, nota-se uma mudança de foco. O que você sente que está mais presente nesse álbum agora?
Esse disco contém a minha leitura da ideia do sagrado como algo que pertence e é inerente a nossa condição – ele fala mais sobre identificação, permanência e resistência. Quero estar mais perto do entendimento do que são as coisas simples da vida. Estou em um momento muito mais de dúvida do que certeza – a única é a da continuidade, o “ir para frente”.
Nota-se que neste álbum você se desprende um pouco do molde “2/4” do gênero samba. Como foi esse momento de buscar novas sonoridades e ritmos?
Olha, eu cheguei pela dúvida (risos) e pela ajuda primorosa do Swami – um artista tão sensível que tem uma qualidade que me é muito preciosa, a escuta.
Foi com a ajuda dele que escolhemos os outros músicos – cada um com uma contribuição ímpar. E as sonoridades já tinham sido “afetivamente pré-concebidas” desde o primeiro contato com as canções do Roberto.
A questão performática sempre foi um elemento muito presente nos seus shows. Como foi o processo de montagem da turnê “Partir” entre você e o diretor cênico do espetáculo, Elias Andreato?
A ideia é tentar potencializar o máximo das coisas pela voz e quando o gesto vem, ele vem involuntário e forte! Claro, devido a uma preparação e entendimento de quase 20 anos de carreira.
Neste espetáculo, o “menos é mais”. A direção do Elias é muito pontual no seguinte sentido: você parte para o mundo com a sua bagagem interna e a sua roupa do corpo – pra que você possa compor. Esse é o grande pensamento.
Eu entro no palco com isso em mente: desde o momento quando eu passo da porta – que tem uma projeção grande de um portão – e decido entrar, está tomada a decisão de partir. Eu parto com o mínimo nas mãos e o máximo da minha voz.
Você enxerga um diálogo entre o repertório do “Partir” com as diásporas contemporâneas sentido Europa?
Eu acho que ainda tenho um diálogo tímido para com o que eu posso fazer e contribuir. Esse diálogo vai se aprofundando a medida que eu reafirmo a minha escolha por falar dessas pessoas, cantar esses povos e estar com eles.
Sinto que estou saindo da bolha. Acho fundamental estabelecer um contato direto e mais forte. Nós não podemos nos calar e, sobretudo, quando você lembra de onde vem, a transferência de herança acontece: só estou porque um dia estiveram.
Viver de arte é um ato político. Quem sobe no palco tem responsabilidade, tem que saber o que dizer e o que está fazendo ali. O artista é uma passagem, um instrumento de representação.
Como tem sido a resposta do público desde o lançamento do disco? E você já está pensando em novos projetos?
A recepção deste álbum está sendo maravilhosa! Sinto que as pessoas têm partido comigo. Acredito que seja fruto de uma estrada bem calçada. E sim: estamos com três discos sendo preparados. Nunca termino um disco sem o outro (risos).