Como surgiu a fitinha do Senhor do Bonfim?

Por: Catraca Livre

A fita do Senhor do Bonfim é um amuleto típico da cidade de Salvador, na Bahia. É muito comum encontrá-la atada em torno do pulso, no tornozelo de diversas pessoas, ou até mesmo amarrada em portões de igrejas. Diz a tradição que o uso dessas fitas advém do antigo costume de utilizar tiras de roupas de santos para ter sorte ou proteção (BRASIL NA BAGAGEM, 2012).

No entanto, com o passar do tempo, as roupas de santos tornaram-se cada vez mais difíceis de serem encontradas e, por isso, foram sendo gradativamente substituídas por fitas coloridas (idem, 2012). Ainda dentro da crença popular, a fita do Bonfim deve ser envolvida com duas voltas no pulso esquerdo e ser atada com três nós, cada um deles correspondendo a um pedido feito em silêncio. Os desejos serão realizados quando a fita romper-se espontaneamente. Há ainda uma minúcia a ser ressaltada: a fita não deve ser comprada, mas sim, presenteada.

A fabricação das fitas do Senhor do Bonfim iniciou-se no ano de 1809 por iniciativa de Manuel Antonio da Silva Servo, tesoureiro da Irmandade do Senhor do Bonfim, que tinha como objetivo angariar fundos para a instituição. Inicialmente, a fita era de seda, possuía uma cruz remetendo aos símbolos das caravelas e possuía 47 cm, tamanho do comprimento do braço direito da estátua do santo padroeiro de Salvador. Por esse motivo, é chamada também de “medida do Bonfim”. O nome do santo era gravado com letras de ouro ou prata, trabalho realizado por artesãos homens, que forneciam sua produção somente para a igreja, que, por sua vez, controlava a difusão do produto.

Ao longo dos anos algumas mudanças na produção ocorreram. O nome do santo passou a ser bordado por mulheres ligadas à igreja e, mais tarde, já não eram mais pintadas à mão, nem bordadas, mas sim, carimbadas com tinta comum preta. Posteriormente às fitas de seda surgiram as de algodão e anos depois vieram as industrializadas.

Inicialmente, o acesso às fitas era restrito às classes abastadas. Mas, visando popularizar seu uso como amuleto, as mesmas passaram a ser vendidas em festas religiosas e eram acompanhadas de santinhos ou miniaturas em cera de parte do corpo para serem curadas ou que foram curadas pelo padroeiro (ex-voto). Especialmente nas romarias, os fiéis as compravam e as usavam como colar.

De acordo com Pidleski (2011, p.10), a fita é um reflexo do processo da colonização brasileira, é um objeto rico em significados culturais, na qual podemos observar toda a fusão religiosa por meio de suas características estéticas e seus múltiplos significados; elas expressam os anseios, os sonhos e as esperanças populares. “A incorporação do divino no objeto é uma característica, não exclusiva, da cultura africana, o que salienta o sincretismo religioso presente nesta manifestação cultural que, por meio do processo de colonização, apresenta aspectos culturais múltiplos” (PIDLESKI, 2011, p.6). Dentro deste sincretismo, as cores das fitas correspondem às dos Orixás que, por sua vez, correspondem os anjos da guarda católicos (FERREIRA, 2005; BRASIL NA BAGAGEM, 2012). Assim sendo, verde-escuro associa-se a Oxossi; azul a Iemanjá; amarelo a Oxum. Vale ressaltar que muitos dos orixás do Candomblé têm simbologia próxima aos santos católicos: Nossa Senhora da Conceição aproxima-se de Iemanjá; Santo Antônio de Ogum; Senhor do Bonfim de Oxalá (FERREIRA, 2005).

A fita produzida atualmente não é mais manual, nem é feita de seda ou algodão e seu tamanho também não corresponde ao do braço do santo. As que conhecemos hoje são produzidas em São Paulo, são feitas em nylon ou poliéster e a medida foi reduzida, provavelmente por causa da produção em larga escala e do próprio material de fabricação. “Interessante e irônico é o fato da Bahia ser o grande consumidor/importador das fitas produzidas em São Paulo, principalmente levando em conta que estas são símbolo debaianidade, de identidade local” (FERREIRA, 2005, p.9).

A produção em série atrela-se à popularização da fita, sendo determinante desta popularização ou sendo por esta determinada. Soma-se a isso o fato da criação não ter sido patenteada, o que permite reproduções e variações sem preocupações com pagamento de patente (MARTINS; PINHEIRO, 2012, p.5).

Durante anos, mesmo utilizada em larga escala por fiéis ou simpatizantes e ampliada a outros santos, como por exemplo, Nossa Senhora Aparecida (Aparecida – SP) e São Jorge (Rio de Janeiro – RJ), como símbolo de fé, superstição ou tradição, a fita não era comum em conteúdos da mídia. Essa situação modificou-se à medida que a fita foi sendo ressignificada em sua utilidade em contextos dessacralizados, estampada em objetos diversos, internacionalizada em exposições de arte, usada por pessoas famosas (MARTINS; PINHEIRO, 2012). Neste sentido, Pidleski (2011) afirma:

“As fitas do Bonfim possuem seu sentido estético, religioso e simbólico agregado a objetos utilitário, a peças de vestuários, como toalhas de banho, camisetas e chaveiros, não bastando apenas ser objeto de devoção religiosa pelos seguidores do santo, sendo necessário transformá-la em produto consumível” (PIDLESKI, 2011, p.7 e 8).

A partir de então, a fita ganhou destaque na mídia e tornou-se produto de exportação. Segundo Pidleski (2011, p.7), os processos tecnológicos de modernização, bem como as mídias, tiveram papel importante no fortalecimento do consumo das fitas. Porém, conforme Martins e Pinheiro (2012, p.3), nessa ampliação do comércio das fitas, sua simbologia nem sempre é mantida. Os autores acreditam que a midiatização auxilia no processo de reapresentação ou de descaracterização do sentido original do amuleto, uma vez que a comercialização em série e a inserção em outros contextos estão pautadas na reinvenção da tradição que atende não somente a uma demanda religiosa, mas também a uma lógica de mercado.

Nesta discussão, de um lado, temos aqueles que acreditam que a fita do Senhor do Bonfim tem perdido sua identidade à medida que é inserida em outras culturas e adere outros formatos e utilidades. Por outro lado, há quem acredite que “(…) a recriação é inerente à sobrevivência das coisas. O novo pode trazer o velho, em outra forma, mas preservando seu simbolismo genuíno, cumprindo sua funcionalidade” (MARTINS; PINHEIRO, 2012, p.14).

Referências

BRASIL NA BAGAGEM.

FERREIRA, A. D. A. Trocando em miúdos a “medida do Bonfim”. 2005.

MARTINS, J.; PINHEIRO, J. Do braço do santo aos braços do mercado: a midiatização da fita do Senhor do Bonfim. João Pessoa, 2012.

PIDLESKI, P. A transnacionalidade dos processos culturais: Fitas do Senhor do Bonfim. 2011.

Matheus Pinheiro de Oliveira e Silva é turismólogo de formação e empreendedor social de coração. É fundador do blog de viagens inRoutes (Fanpage inRoutes). Já morou um ano na Indonésia onde estudou o 3º colegial pelo Rotary International e trabalhou voluntariamente em Kolkata, na Índia, durante três meses pela AIESEC. Viajou por 14 países e se considera um cidadão global. Atualmente é empreendedor social no MERAKI. É fundador e mantém a fanpage GÜD. No Instagram ma_tai e inRoutes.