Aldir Blanc: ‘Resistimos porque do contrário morreríamos’

Por: Kathleen Hoepers

Em comemoração aos seus 70 anos, Aldir Blanc terá parte de sua obra escrita reeditada para a série “Aldir 70”. A coleção lançada pela editora independente Mórula conta com cinco volumes – três reedições e dois livros com escritos inéditos – e será viabilizada através de campanha de financiamento coletivo.

Com mais de 50 anos de estrada, Blanc é carioca nato, daqueles nascidos no Estácio e criados em Vila Isabel, formado em medicina e pós-graduado nas esquinas e nos botequins. Emplacou sucessos como “Amigo é Pra Essas Coisas”, com Sílvio da Silva Júnior, e “Resposta ao Tempo”, com Cristovão Bastos, é o parceiro mais frequente de João Bosco, com quem firmou as inesquecíveis “O Bêbado e a Equilibrista” e “O Mestre-Sala dos Mares”, e consagrou-se como “ourives do palavreado” por Dorival Caymmi. Ainda carrega o título de um dos compositores mais gravados por Elis Regina.

“Eu aprendi muito com Noel Rosa, com o samba-canção, com os boleros no vitrolão da vó Noemia em Vila Isabel.”

A obra de Aldir rompe fronteiras e notabiliza-se como um acontecimento político-cultural capaz de expressar as tensões e distorções do Brasil atual, marcada pelo lirismo de suas composições e pela crônica da vida urbana, expondo tragédias do ontem e de hoje. “Procuro dizer o que os sem voz não podem falar e me atenho à linguagem simples mas preciosa das ruas”, revela em entrevista exclusiva por e-mail ao Samba em Rede.

Na entrevista, Blanc comenta sobre sua relação com o bairro de Vila Isabel, a paixão pelo jazz e a sinergia entre a crônica e a letra de música. Ainda, em primeira mão, revela que será homenageado pelas cantoras Maria João, Dorina e Mariana Baltar com gravações contendo letras de sua autoria.

Assim como uma canção que nunca envelhece nem se torna datada, Aldir Blanc foi um homem à frente do seu tempo. Em 70 anos de vida dedicados à arte, à família e aos amigos, o músico nunca viveu à sombra do medo de colocar o dedo na ferida, mesmo sob condições adversas. Sobre o samba e os prejuízos da globalização, declara: “É o que somos, nossa vida, nossa alma. Resistimos porque do contrário morreríamos.”

Por essas e por outras que Aldir Blanc merece todo o nosso respeito e nossa humilde homenagem.
Confira a entrevista completa:

Você está sendo homenageado com a série “Aldir 70” por uma editora independente, a Mórula. No total, a coleção conta com cinco volumes. Como aconteceu essa divisão e quais os critérios de seleção adotados para chegar a composição final?

Tenho a política de não interferir nesse tipo de escolha, a menos que peçam minha opinião. No caso presente, acho que me limitei a ressaltar que gostaria de ver “Vila Isabel – Inventário de infância” relançado.

Para você, o que há de mais especial em cada uma das publicações?

Bom, é claro que estou muito feliz com esses relançamentos. A Mórula, sem favor algum, é a mais afetuosa das editoras com que trabalhei e isso deixa o autor tranquilo e confiante.

Acho que minha menina dos olhos é, como disse acima, o relançamento do “Inventário da Infância”, o mais pessoal dos meus livros, que descreve como foi difícil a relação com meus pais: minha mãe muito doente nunca se recuperou da psicose puerperal e sou filho único; a culpa de ter “causado” a doença dela sempre machuca. Meu pai, um bom homem, o cara mais íntegro que conheci, desgostoso com a situação, escolheu a boemia como desafogo para toda a tristeza da doença de minha mãe, e, embora não tenha caído na bebida, foi jogar, tornou-se profissional de sinuca, apostador de cavalos e cassinos clandestinos; sumia dias e noites sem que a gente soubesse onde estava, tudo muito angustiante. Quando voltava, tinha uma brutal crise de asma e eu ficava torcendo para que a ambulância do então SAMDU chegasse a tempo. Era terrível.

Quero registrar também minha surpresa com “O Gabinete do Dr. Blanc”, com textos sobre jazz e literatura policial, ter sido escolhido um dos melhores livros de 2016.

Num tempo em que se fala tanto na derrocada dos jornais e materiais impressos, você resolveu articular um financiamento coletivo através de uma plataforma online para criar uma rede de conhecimento sobre o projeto. Como surgiu essa ideia?

Essa ideia é inteiramente da Mórula. Com o tipo de cuca que tenho, jamais seria capaz de bolar algo assim. No computador, só sei ler e responder e-mails. Tenho, depois de muita resistência, o mais vagabundo dos celulares, para saber onde estão as filhas, netas, netos e bisneto, nos tiroteios quase diários aqui na área, tratados de forma farsesca recentemente pelos paspalhos Burrico Maia, o asqueroso minidef (alguém precisa nos defender dele!), o sinistro da justiça e o sobrevoo do presifraude da ré-pública, Treme-Temer, um dos piores e mais nefandos criminosos do país, institucionalmente muito mais perigoso que Marcola e Fernandinho Beira-Mar juntos (sic).

Com uma linguagem que vai do lirismo ao escrachado ao tentar traduzir a vida na cidade, quais os principais desafios éticos e estéticos na hora de criar suas narrativas em suas crônicas?

É simples, pelo menos na aparência: procuro dizer o que os sem voz não podem falar e me atenho à linguagem simples mas preciosa das ruas.

Qual é a chave de leitura para a obra de Aldir Blanc em tempos de politicamente correto e incorreto?

Não ceder ao politicamente correto, que é a morte do humor e da criatividade popular.

É possível identificar a fronteira que separa a crônica da letra de música? O processo de criação literária se mistura com o das canções ou cada forma tem um momento próprio?

Quando ouço num boteco com música onde cantam minhas letras, como o Bip-Bip do Alfredinho, e depois penso em algumas crônicas que escrevi, noto que elas se misturam de forma inseparável.

Sua vida e obra encarnam uma série de questões importantíssimas para pensarmos a atual situação política do país. Como não discutir futebol, política e religião em tempos onde times são dirigidos por tiranos, vivemos em estado de sítio e o Rio de Janeiro elegeu como prefeito uma figura dúbia e anti-carnavalesca? 

Esse prefeito, Crivellório, é uma desgraça. Está cercando a cultura popular, os centros afro-brasileiros com burocracia e intolerância. O mesmo faz Obandoria em São Paulo, que já é proposto até para presidente do Brasil, uma irresponsabilidade de oportunistas que resultaria em tragédia sem precedentes. Acho engraçado e hipócrita que figuras como a falsa Garota de Ipanema (fui apresentado há décadas por Maurício Tapajós à verdadeira, que é morena) apoiem Crivellório. Viveram toda uma carreeeeiiiira à custa de bunda para depois “moralizarem”… (sic)

Em entrevista recente ao Samba em Rede, Moacyr Luz fala sobre a tragédia urbana pela qual os cariocas passam interpretando a canção “Na Vaselina”, uma antiga parceira com Nei Lopes. Na letra, criada há anos mas que parece saída das páginas do jornal de ontem, Moa diz:
“Eu sei/ Que as coisas por aqui/ Não vão assim tão bem / Mas eu não sou “psi”, nem vou ficar refém: / De Roma ao Haiti está tudo assim também /
Não há / Cidade sacrossanta em mais nenhum lugar/ Pode reparar: / Hoje a brabeza ficou tanta que até Xangrilá / Já tem bala traçante e fuzil Agacá /
Eu sou/ Daquele tempo bom de bonde e lotação / De não falar bobagem nem cuspir no chão / Mas não posso negar que o Rio ainda é o Rio /
Mudou/ Mas ainda persiste aquela norma antiga / De toda grande bronca, confusão e briga / Findar no bar/
Mudou / Mas tudo embaralhou com a globalização / O couro tá comendo no Cazaquistão / No Afeganistão e Bósnia-Erzegovina / Mudou / Mas no meu velho Rio ainda predomina / O jeito de a gente levar / Na vaselina. ”
Para você, como soa essa crítica? Qual a situação do samba em tempos de globalização? 

Bom, não vou aqui teorizar sobre os prejuízos da globalização, matando culturas. Não sou nenhum Noam Chomsky. O fato é que o ataque à música popular vem de longe: “críticos em SP recebendo jabá e depois sendo demitidos sem nenhuma transparência”. Jabás também na execução pública, com programadores recebendo propinas, como testemunhou o falecido produtor musical Paulinho Albuquerque, em carros, pacotes de cocaína, etc.

Também o sambola e a sertanagem corromperam muito as rádios e TVs, enriquecendo seus perpetradores. Hoje, estamos ilhados feito um urso polar numa película de gelo antes do fim. Eu vivo de adiantamentos, empréstimos e tal. É vergonhoso. Tem muito canalha com casa em Búzios construída com meus direitos autorais.

Sua obra propõe um diálogo com o jazz. Em termos de valorização desse gênero musical, quais foram seus primeiros aprendizados? Como vê o tipo de análise feita pela mídia? E o que isso diz, na sua opinião, do conhecimento que temos da música instrumental brasileira hoje em dia?

Eu aprendi muito com Noel Rosa, com Dorival Caymmi, com o samba-canção, com os boleros no vitrolão da vó Noemia em Vila Isabel. O jazz veio depois e me apaixonou. Meus favoritos são Duke Ellington, Coltrane e Mingus, bálsamos até hoje em horas de sufoco.

Além do jabá, a “falência” do samba provém da mudança da programação das rádios, da TV e dos produtos das gravadoras. Apesar de tudo, o samba resiste ao desaparecimento. A que você atribui essa capacidade de permanência?

É o que somos, nossa vida, nossa alma. Resistimos porque do contrário morreríamos.

Há planos de ampliar o escopo do projeto “Aldir 70” e pensar em um novo CD?

Os planos de futuro acontecem e acontecerão pela generosidade de artistas como a cantora portuguesa Maria João que está lançando um complexo CD só com letras minhas, inclusive algumas compostas especialmente para o disco, com André Mehmari e o falecido compositor português Carlos Paredes. Dorina acaba de fazer um CD também toda com letras minhas. É uma guerreira admirável. E Mariana Baltar prepara um CD com a base dos amigos do “Água de Moringa”, no qual todas as letras são minhas. Como diria meu pai Wilson das Neves: ô sorte!