Trecho do livro “Histórias de Canções”, de Wagner Homem

Por: Catraca Livre

 

Morena dos olhos d’água (1966)

Morena dos olhos d’água
Tira os seus olhos do mar
Vem ver que a vida ainda vale 
O sorriso que eu tenho 
Pra lhe dar 
Descansa em meu pobre peito
Que jamais enfrenta o mar
Mas que tem abraço estreito, morena
Com jeito de lhe agradar
Vem ouvir lindas histórias
Que por seu amor sonhei
Vem saber quantas vitórias, morena
Por mares que só eu sei
O seu homem foi-se embora
Prometendo voltar já
Mas as ondas não têm hora, morena
De partir ou de voltar
Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também
Mas meu canto ainda lhe implora, morena
Agora, morena, vem
Inúmeras matérias de jornal atribuem à psicanalista e socialite Eleonora Mendes Caldeira o status de inspiradora dessa música. Uma das poucas vezes em que Chico falou publicamente sobre o assunto foi no DVD À flor da pele:
Todo mundo gosta […] de querer ligar canções ou obras à vida de seus autores, o que glamoriza a biografia, mas empobrece a imaginação […] O que acontece também é que você pode fazer canções e depois atribuir, dar de presente… […] “Ah! Essa foi pra você”. Você pode fazer uma canção pra determinada pessoa e tal. […] A canção é feita pensando na pessoa, mas o que vem depois, as palavras que estão ali, não são biográficas. Os nomes que estão nas canções…. não me lembro no meu caso de ter feito…[…] 
Outros fazem. […] As minhas são todas inventadas. […] Aquela menina era bonita. Você não vai botar isso na entrevista. Hoje ela é uma senhora. […] Eu lembro que ia à missa dos dominicanos… eu e a minha turma… pra ver a Eleonora. Ela era simplesmente maravilhosa […] mas eu não ousava chegar muito perto […] Tinha medo de tirar pra dançar porque podia levar uma tábua, como se dizia na época. Mas depois que eu virei famoso, deu pra chegar a ela sem medo de levar tábua.
Como se vê, ele não disse um sim ou um não peremptório. As irmãs Ana de Holanda (Bahia) e Maria do Carmo (Pii) têm outra versão. Garantem que quando Chico terminou “Morena dos olhos d’água”, ligou para mais de uma mulher dizendo serem elas a musa.
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A banda (1966) 

Estava à toa na vida 
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar 
Cantando coisas de amor
Aminha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
Ea meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
Ovelho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela 
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou 
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
Oque era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
Chico lembra-se de ter ouvido Gilberto Gil cantar “Ensaio geral” no Sandchurra, bar da Galeria Metrópole, no centro de São Paulo, e um dos pontos de encontro dos jovens artistas. Ficou impressionado e pensou em fazer uma música pra ganhar dessa no II Festival de Música Popular Brasileira, que aconteceria em setembro e outubro na TV Record.
Ele acabara de voltar da Europa, por onde excursionara com Morte e vida severina, e havia composto uma série de canções, entre elas “A banda” e “Morena dos olhos d’água”.
Primeiro veio a ideia de uma banda passando, depois a música e, finalmente, a letra. Composta em um único dia, na sua casa da rua Buri, na hora do almoço, ficaram faltando os versos finais: “Aquele final todo foi posterior. Não queria deixar a banda tocando para sempre na rua”. Mas era “Morena dos olhos d’água” que ele pretendia inscrever no festival e que, certo dia, cantou para Gilberto Gil e Torquato Neto. Não era sua intenção, porém, no entusiasmo, cantou também a marchinha, mesmo incompleta. Chico imaginava que a música iria pegar e a inscreveu no festival. O que ele não previu foi o tamanho do sucesso.
Na segunda eliminatória, em 28 de setembro de 1966, ela foi cantada apenas por Nara Leão. O diretor Manoel Carlos percebeu que os metais da banda que a acompanhava prejudicavam o entendimento da letra e que o tempo de dois minutos era muito pequeno, e sugeriu que na terceira eliminatória o autor cantasse a marcha uma vez, apenas com violão, para depois Nara entrar e repeti-la com os arranjos de banda feitos por Geni Marcondes. A alteração foi entendida por alguns concorrentes como um privilégio, mas prevaleceu até a final.
Pode ser que o fato de Chico formar com Nara uma dupla que conquistava a simpatia do público tenha também pesado na decisão dos produtores. Dias antes da final, a Revista do Rádio promovera uma enquete entre seus leitores: “A banda” recebeu 35.743 votos contra 17.855 dados a “Disparada” (Theo de Barros e Geraldo Vandré), que seria sua grande concorrente.
A polarização entre “A banda” e “Disparada”, defendida por Jair Rodrigues, ganhara uma dimensão inimaginável, a ponto de o jornal
O Estado de S. Paulo escrever: “Desde o finzinho de setembro, só duas torcidas contam: a da Associação Atlética Disparada e a da Banda Futebol Clube”. “A expectativa era tão grande que alguns teatros e cinemas chegaram a suspender suas sessões”, conta Zuza Homem de Mello em seu livro A Era dos Festivais – Uma parábola. A final aconteceu numa segunda-feira, 10 de outubro de 1966, no Teatro Record, que ficava na rua da Consolação. No auditório a plateia, dividida, gritava, balançando faixas e cartazes enquanto aguardava o resultado. Não menos tenso era o clima nos bastidores depois que Chico, percebendo – ou sabendo – que venceria, sugeriu que houvesse empate entre as duas.
O que gerava tensão nos organizadores era a ameaça que acompanhava a inusitada proposta: ele se recusaria publicamente a receber o prêmio sozinho. Uma festa como aquela, transmitida pela tevê, não podia terminar em confusão. Na queda de braço, Chico venceu no palco e também nos bastidores. Cada uma das canções levou metade do prêmio que caberia ao primeiro lugar.
Chico jamais fez qualquer comentário sobre o episódio. O resultado da votação (sete a cinco em favor de “A banda”) foi mantido em sigilo por quase quatro décadas. Os votos ficaram num cofre na casa de Zuza Homem de Mello, que só revelou os números em seu livro já citado.
Logo após o festival, chegaram às lojas os compactos de Chico e de Nara com a marchinha. Este último chegou a vender 100 mil cópias em apenas uma semana, animando a RGE a produzir e lançar ainda em outubro o LP
Chico Buarque de Hollanda. No mesmo mês ele integrou o júri do I Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, durante o qual 6 mil pessoas exigiram que o jurado comparecesse ao palco e com ele cantaram a marcha que tomava conta do país.
Bandas de todos os países e tipos a incorporaram ao seu repertório. As gravações se multiplicavam. Até mesmo um dos mais famosos palhaços do Brasil, Carequinha, gravou a marcha com coro infantil de Irany de Oliveira e a Bandinha de Altamiro Carrilho. Pelo mundo afora surgiam as mais bisonhas versões da letra, que não guardavam qualquer semelhança com a original, como no caso da alemã, feita por Weyriche Conta:
E certamente este anojá se pode prevero mundo da moda traráo que agrada a Rositaquando no México, à noite ao carnaval se vai […]Uma moda como a banda ainda não houve Os cocos se transformam em roupagense a brincadeira continua Abanda está aí
“A banda” ainda lhe renderia seu primeiro programa de televisão e o primeiro embate com a ditadura militar. O programa, comandado por ele e por Nara Leão, ia ao ar pela TV Record e chamava-se Pra ver a banda passar. A performance tímida e pouco televisiva de ambos lhes valeu o título de “maiores desanimadores de auditório”, dado pelo escritor de novelas Manoel Carlos, na época diretor de televisão. Já o embate com a ditadura ocorreu quando o governo resolveu usar “A banda” numa propaganda de alistamento militar. Chico protestou, e a peça deixou de ser veiculada. Haveria confrontos piores. Os elogios vinham de todos os lados. O poeta maior Carlos Drummond de Andrade dedicou-lhe uma crônica, publicada no
Correio da Manhã:
O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.
A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e a banda vêm trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, a falta de ar.
A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a ideia de como andávamos precisando de amor. 
Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Não convida a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta banda é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio maestro Anacleto Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem se ver, o contentamento descontente, a dor que desatina sem doer, abrindo a ferida que dói e não se sente, como explicou um velho e imortal especialista português nessas matérias cordiais.
Meu partido está tomado. Não da Arena nem do MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele não obedece a cálculos da conveniência momentânea, não admite cassações nem acomodações para evitá-las, e principalmente não é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo amor, e de amar pela compreensão.
Se uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o aparecimento da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de signos ameaçadores, é porque há uma beleza generosa e solidária na banda, há uma indicação clara para todos os que têm responsabilidade de mandar e os que são mandados, os que estão contando dinheiro e os que não o têm para contar e muito menos para gastar, os espertos e os zangados, os vingadores e os ressentidos, os ambiciosos e todos, mas todos os etcéteras que eu poderia alinhar aqui se dispusesse da página inteira. Coisas de amor são finezas que se oferecem a qualquer um que saiba cultivá-las, distribuí-las, começando por querer que elas floresçam. 
E não se limitam ao jardinzinho particular de afetos que cobre a área de nossa vida particular: abrangem terreno infinito, nas relações humanas, no país como entidade social carente de amor, no universo-mundo onde a voz do Papa soa como uma trompa longínqua, chamando o velho fraco, a mocinha feia, o homem sério, o faroleiro… todos os que viram a banda passar, e por uns minutos se sentiram melhores. E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente.
Até mesmo o irascível Nelson Rodrigues exaltava a canção em texto publicado no jornal
O Globo:
Imaginem vocês que, um dia desses, entro em casa e encontro minha mulher, Lúcia, e a minha filhinha, Daniela, com olhos marejados. Acabavam de ouvir “A banda”, ou seja, a mais doce música da Terra. Dias depois, eu próprio ouvi a marchinha genial. E a minha vontade foi sair de casa, me sentar no meio-fio e começar a chorar. Com “A banda”, começa uma nova época da música popular no Brasil.
Apesar de saudada com entusiasmo por figuras tão díspares, “A banda” não fez de Chico a tal “unanimidade nacional” que se propalava. Havia quem visse no lirismo e na singeleza da canção um retrocesso, uma postura alienada para uma época que exigia o engajamento político dos artistas. O que o patrulhamento ideológico de então chamava de alienação era, na verdade, uma atitude pensada, conforme o próprio Chico esclareceu em entrevista à Rádio do Centro Cultural São Paulo:
Quando compus “A banda” eu me lembro que – pra não dizer que havia unanimidade – havia, sim, uma discreta condenação por parte da esquerda que ainda insistia em ouvir o grito do
Opinião, o grito de um “Carcará” e tal. A Nara Leão, aliás, me acompanhou nesse movimento, porque ela também já estava um pouco cansada dessa tal música de protesto que se fazia então, que não passava das portas do teatro e que, no fim das contas, era ineficaz. “A banda” era uma retomada do lirismo, proposital mesmo, porque eu não era tão inocente assim quanto parecia. Eu tinha um passado – também discreto, porque eu era muito garoto – de luta estudantil.
O sucesso foi tal que câmaras municipais do todo o país lhe conferiam o título de cidadão honorário. Em algumas localidades o prefeito lhe entregava a chave da cidade, como se faz com o Rei Momo no carnaval. Chico era carregado por uma enxurrada de shows país afora.