Padre Julio Lancellotti: defensor da população marginalizada de SP

Aos 71 anos e 35 de sacerdócio, o padre Julio Lancellotti segue seu trabalho mesmo durante a pandemia

Com 71 anos e 35 de sacerdócio, o padre Julio Lancellotti é uma referência nacional na defesa dos direitos humanos, atuando, ao longo de sua vida, junto a imigrantes sem teto, refugiados, população LGBTQI+, menores infratores, detentos em liberdade assistida e portadores de HIV. Nos últimos anos, no entanto, ganhou destaque sua dedicação para o acolhimento da população marginalizada que vive nas ruas da capital paulista.

Padre Julio Lancellotti é uma referência nacional na defesa dos direitos humanos
Créditos: Reprodução Instagram
Padre Julio Lancellotti é uma referência nacional na defesa dos direitos humanos

“A preocupação social no âmbito do religioso é com a vida como Deus quer que a vida seja. A fome é uma preocupação, assim como a falta de moradia, de assistência sanitária e de saúde. Tudo aquilo que ameaça a vida é uma preocupação no contexto em que nós estamos. Se eu tivesse em Rondônia, possivelmente estaria junto com a luta pela terra. Se eu estivesse numa área indígena, deveria estar junto com as nações indígenas. Se eu estivesse em áreas onde há ocupações, eu teria que estar junto às pessoas daqueles locais. A grande preocupação no serviço religioso é a dimensão religiosa que defende e protege a vida”, afirmou.

Coordenando a Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo e à frente da Igreja São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, zona leste da capital, o pároco recebe pessoas em situação de vulnerabilidade social todos os dias para o café da manhã e, desde a pandemia, o número daqueles que comparecem ao local, foi de 200 para 600.

“Acho que o religioso tem que ser um servidor, não um líder. Dentro do cristianismo e também em qualquer religião ou fora dela, a gente tem que ser humano, humanizado e humanizar. Então, na minha convivência com a população em situação de rua, me sinto numa busca de coerência com a minha fé. Quando o padre é ordenado pelo bispo, ele diz: ‘viva aquilo que você celebra’. Nós celebramos a partilha. Sendo assim, tenho que viver o serviço aos pobres”, explicou.

Com idade que o coloca dentro do grupo de risco da doença, ele não se intimida e segue sua rotina normalmente junto à população de rua. Exceto pela adesão do uso de equipamentos de proteção como jaleco, avental, luvas de látex, escudo acrílico facial e um termômetro para medir a temperatura de todos, nada mudou na forma com que atua com cada um que ali chega em busca de amparo.

“Tem sido uma realidade que nós precisamos construir, porque nunca tínhamos vivido uma pandemia assim. Eu não sabia como ser padre em uma pandemia. Então tenho tomado todos os devidos cuidados não fazendo aglomerações, oferecendo máscara e álcool em gel, medindo temperatura, socorrendo os que estão doentes os encaminhando para o atendimento médico. Tivemos que fazer uma adaptação, mas eu não poderia de maneira nenhuma estar longe das pessoas mais fracas, vulneráveis e abandonadas. Não é fácil, mas é um desafio por que você faz o quê nessa hora? Você convive com eles, está sempre perto, é comprometido e na hora do maior sofrimento você vai embora? Não”, falou o religioso.

Grande defensor também dos transexuais em situação de rua, em 2015 protagonizou um episódio controverso: lavou os pés da atriz transexual Viviany Beleboni, que sofreu muitas críticas após desfilar crucificada na 19º Parada Gay, em São Paulo. O ato foi considerado um escândalo por muitas pessoas, inclusive por membros da igreja. O padre o justificou como um pedido de perdão pela forma cruel com que Viviany e a população LGBT foram tratadas após a cena no evento.

Enquanto a dedicação impressiona e chama a atenção de admiradores que exaltam os esforços do padre Julio (ele fez questão até de ajudar no cadastro de moradores de rua no auxílio emergencial do Governo Federal), também atrai olhares de quem discorda e não entende sua luta em defesa dos mais necessitados. Por toda sua trajetória, não foram poucos os momentos em que recebeu críticas e ameaças, incluindo de políticos que são aqueles que mais deveriam se engajar para melhorar a vida destas pessoas.

“Nós vivemos numa estrutura social com muita desigualdade e a visão de uma igreja multiclassista, como a Igreja Católica, perpassa todas as classes sociais. Como há um conflito entre esses grupos sociais, se você se posiciona ao lado do pobre numa linha de emancipação, de autonomia e de libertação, isso incomoda. Agora isso não é novo. Se você for pegar todos os personagens da história da Igreja Católica, todos os que estiveram junto dos mais pobres incomodaram”, disse.

Em uma das situações mais recentes (ocorrida em 15 de setembro), o deputado Arthur do Val (candidato à prefeitura de São Paulo pelo Patriota), fez um post no Twitter chamando o padre de “cafetão da miséria” e dizendo que seu trabalho seria ‘deplorável’. Após este episódio, o pároco passou a receber ameaças diversas.

‘Num mundo de tantos contrastes como o nosso, existirão críticas. Quem está do lado dos pequenos, dos pobres e dos esquecidos, vai ser tratado com crueldade também. Por exemplo, a média da opinião pública sobre a população de rua é negativa e dificilmente se encontra alguém que fale alguma coisa boa a respeito. Em geral, o que as pessoas conhecem, são coisas negativas e eles [as pessoas em situação de rua] não são só isso. Se eles são criticados, quem está com eles também será. Se eles são ameaçados, quem está com eles também será. Se são pisados, quem está com eles também será. Eu não me espanto. Causa-me tristeza e sofrimento não o fato de atacarem ou criticarem a mim, mas de fazerem isso com os moradores de rua”, afirma.

Sobre sua fama de rebelde, ele é taxativo: “Em uma sociedade tão hegemônica de poder como é a nossa, a rebeldia é necessária para contestar esse sistema e esta ordem injusta na qual nós vivemos. Há que se rebelar contra a injustiça, opressão e violência”, finalizou.