Brasileira relata como é ser mulher no Irã
Por Sylvia Rodrigues, do blog Pangea etc
Antes de começar a saga, vale lembrar que o Irã não é a Arábia Saudita, como muitos pensam. Mulheres dirigem, votam, trabalham, podem se divorciar e ter a guarda dos filhos. Após a Revolução Islâmica de 1979, liderada pelo aiatolá Khomeini, foi instituído o uso obrigatório do hijab (lenço que tampa os cabelos) para todas as mulheres iranianas –e aquelas que estavam de passagem por lá também.
Com que roupa eu vou?
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“Você está adentrando no espaço aéreo iraniano. Mulheres, gentileza colocarem seus hijabs”. Foi com essa ordem da aeromoça que caiu a ficha que eu estava entrando no Irã e que a cantiga tocada seria outra pelos próximos dias. Como eu era praticamente a única gringa do voo, logo pedi ajuda a uma iraniana para colocar meu hijab da maneira mais natural e menos caricata possível. Ponto pra mim. Estava quase invisível. Só que não.
Obviamente, planejar uma viagem para o Irã requer alguns cuidados, ainda mais quando estamos falando de uma mulher viajando em um país que sempre aparece como figurão no ranking dos locais com mais desigualdade entre gênero do mundo (podem dar uma vasculhada no “Global Gender Gap Report”). Mesmo eu sendo uma brasileira das mais discretas e que não mostram muito a pele (eu sou quase um tom pastel), meu guarda-roupa não me ajudou tanto quanto eu gostaria.
A cartilha fashion imposta pelo governo consiste em: um hijab cobrindo os cabelos, roupas fechadas e que não deixem realçar nenhuma curva do corpo. Como sou dessas que acreditam que “regras são para serem quebradas”, achei que um casaquinho curinga preto (aberto), desses que tampam o derrière em sua quase totalidade, estaria de bom tamanho para começar a explorar Teerã. Foi aí que eu tive a sensação de que os quase oito milhões de habitantes da cidade olhavam todos pra mim: tinha algo errado com minhas vestimentas.
Eu precisava ser invisível e só consegui depois de investir alguns rials na compra de um manteau preto que ia quase até a minha canela. Fiz a linha gótica da cabeça aos pés, até descobrir que estava fantasiada de burocrata: as mulheres que trabalham nas repartições públicas usam o hijab preto e roupa preta. Aliás, analisar o dress code das iranianas é ler nas entrelinhas o posicionamento de cada uma dentro da sociedade.
Aquelas que usam o típico chador iraniano (véu preto que cobre todo o corpo, deixando somente o rosto de fora) são geralmente de famílias tradicionais religiosas e condizentes ao governo dos aiatolás. Já aquelas que ostentam um hijab colorido, mostrando um pouco da franja, são mais contemporâneas, modernas, pra frentex. E eu me achando mega descolada vestida de funcionária pública. Resolví parar de investir em manteaus e comprar lenços.
E aí a rotina do “tira hijab, põe hijab, bate um vento, cai hijab” foi se instaurando. E com a minha capacidade de inseto de me adaptar a qualquer ambiente, aquilo já fazia parte de mim sem muito incômodo no terceiro dia de viagem. Até tirava sarro quando chegava no hotel e tirava o lenço: eu tinha cabelo e nem lembrava mais.
Já falamos da polícia dos costumes aqui nesse post. Essas moças (aqui estou fazendo uso da figura de linguagem ironia) vestidas de preto da cabeça aos pés estão sempre dispostas a julgar o hijab alheio. Se encresparem com um pouco do cabelo pra fora, ou uma roupa que parece não agradar os aiatolás, a advertência rola solta. E se não quiser assinar, pode dar até prisão. Por via das dúvidas, melhor seguir o estilo low profile, o que não significa ser sem criatividade. O site de street style The Tehran Times é o melhor exemplo de quão modernas e estilosas as iranianas podem ser, dando um banho em qualquer fashionista ocidental.
Proibido fumar aqui
Eu não tive muitas experiências de cerceamento de liberdade enquanto viajava pelo Irã e acredito sim que possa ser tranquilo uma aventura sozinha pelo país. Algumas coisas me mataram de ódio por alguns minutos, mas foram episódios ocasionais que não tiraram o brilho da viagem.
Enquanto dependente do tabaco que sou, tive algumas cenas engraçadas com meu hábito. Existe um código de conduta social que diz que mulher não pode fumar na rua porque pega mal, sabe como é… Eu enquanto estrangeira no país fiz vista grossa completa para essa regra, o que atraía olhares repressivos de homens e mulheres, até eles chegarem perto de mim e perceberem que abacaxi não é laranja e que de persa eu só tenho o olho grande mesmo.
Em Teerã existe também o táxi feminino e o vagão do metrô destinado às mulheres. Não usei nenhum dos dois e, pra ser bem sincera, as iranianas também não parecem se segmentarem tanto assim nos transportes. Vai todo mundo junto e misturado mesmo, às vezes até rola uma dança do maxixe nas motos, que já vi carregar uma criança, duas mulheres (de chador) e um homem.
Claro que a cartilha básica de cuidados da mulher moderna/viajante independente/ mas que vive em um mundo machista deve ser seguida, afinal, tem sempre algum espírito de porco vagando por aí. E no Irã, a regra não é diferente.
Eu viajei acompanhada do Lucas, meu parceiro de blog, por toda a viagem, amém. E em quase um mês de viagem, os iranianos foram bastante respeitosos e me trataram em pé de igualdade, sem muito mimimi. Talvez pelo fato de não ser de lá. Se fosse, a toada poderia ser outra. Mas desses melindres em que não sou especialista, prefiro não me meter. Antes de viajar, li alguns relatos de viajantes que não podiam dividir quarto com amigos do sexo oposto se não fossem casados. Todo o meu planejamento virginiano iria por água abaixo se isso acontecesse. Mas em nenhum hotel, nem mesmo nos cafundós, nos perguntaram se éramos casados. Ainda bem, porque acredito que não convenceríamos.
E as iranianas? Como vivem? Do que se alimentam?
Esse meu relato é extremamente pessoal e voltado para quem planeja ou tem curiosidade de dar pinta na Pérsia algum dia. Seria muito soberbo da minha parte querer entender o peso de ser mulher no Irã, passando apenas um mês no país.
Claro que uma consulta aqui, outra ali vão calçando o chão pra saber onde se está pisando, mas ainda assim superficial. Debates sobre feminismo, machismo e opressão não são colocados com dois dedos de prosa e seria até deselegante da minha parte bancar a curiosa tão rapidamente. Mas de todas que conheci e conversei, uma coisa é certa: o hijab é desaprovado pela maioria.
A resposta eram sempre mais ou menos assim: “se não fosse obrigatório, quase todas usariam da mesma forma”. Existe um movimento online liderado pela jornalista iraniana Masih Alinejad, radicada em Londres, chamado “My Stealthy Freedom” que instiga as mulheres iranianas compartilharem suas fotos sem o uso dohijab. Pelo número de adeptas, leva-se a crer que o hijab pesa e a velha história do “mulher tem que”… ah, tem é que ter um fim mesmo.
Durante nossa estadia, dois episódios marcantes aconteceram. Em Esfahan, algumas meninas foram atacadas com ácido no rosto, DIZEM pelo mau uso do hijab. E no dia de ir embora, a sentença da jovem iraniana de apenas 26 anos, Reyhaneh Jabbari, veio à tona: condenada à morte (enforcada) pelo assassinato de um homem que a estuprou. Se ser mulher dos lados de cá dos trópicos já não é nada fácil, a luta é dobrada pros lados de lá. E que mais Sakynehs e Marjanes existam e resistam, para que frases como “You can’t do anything without a man” passem a existir somente no filme do cineasta iraniano Jafar Panahi.
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