Gustu, a gastronomia como motor de transformação social

Por: Catraca Livre
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Foto: Melting Pot Bolívia[/img]

Neste sentido surpreendeu a série de “talleres” “Alta Cocina em el Eje Andino” que trouxe uma amostra da impressionante diversidade e riqueza da cozinha andina que o mundo começa a descobrir que não é “apenas” a excepcional comida peruana. Além de celebridades da gastronomia internacional como Gastón Acurio e outros chefs peruanos que projetaram a imagem do Peru muito além das suas fronteiras, ali estavam representantes do Chile e da Bolívia. E foram estes últimos que Magic Window trouxe em destaque naquela ocasião.

Kamilla Seidler e Michelangelo Cestari são chefs do restaurante Gustu em La Paz, Bolívia. A sua apresentação “Vegetación Endémica” na Madrid Fusión 2014 surpreendeu o público com as nuances e matizes da paisagem natural boliviana e da cultura dos povos andinos aplicadas a uma gastronomia de autor inovadora e que valora ingredientes regionais. Os chefs do Gustu trouxeram uma pequena amostra da cultura gastronômica boliviana com ingredientes como a carne da lhama. Uma carne leve com baixo teor de gordura e de fácil preparo. Apenas um dos milhares de produtos que a região tem a oferecer como o místico grão dourado quinua, além de outras espécies menos conhecidas de grãos como o amaranto, cañahua, tubérculos e raízes fortes típicas de uma culinária autêntica e simples, e ao mesmo tempo, rica e complexa em sabores, nutrientes e cores.

No entanto, o mais interessante do Gustu é que não se trata apenas de um restaurante de alta cozinha em um lugar exótico, como a maioria do público deve ter entendido. Na entrevista concedida à Magic Window, Kamilla e Michelangelo puderam explicar em maiores detalhes a dimensão da obra social da qual Gustu é só a ponta do iceberg. Por trás deste sofisticado e surpreendente restaurante está a Fundação Melting Pot do chef e empreendedor gastronômico Claus Meyer um dos fundadores e idealizadores do restaurante e do conceito Noma ao lado de René Redzepi. O restaurante de Copenhagen eleito pela 4ª vez o melhor restaurante do mundo (2010, 2011, 2012 e 2014) pela revista “The World’s 50 Best Restaurants”.

O termo Melting Pot é uma metáfora para ideia de sociedades heterogêneas se tornarem mais homogêneas, os diferentes elementos “fundidos” em um todo harmonioso com uma cultura comum. A fundação estabelecida em junho de 2011 é uma organização não governamental com o propósito de melhorar a qualidade de vida e o prospecto de futuro de populações vulneráveis e desfavorecidas em Dinamarca e países em desenvolvimento selecionados. Isto através de atividades que têm a comida e a gastronomia, assim como, o empreendedorismo como os elementos primordiais e que se fundem em um todo harmonioso. A gastronomia como caminho e motor de transformação positiva.

A extraordinária biodiversidade presente nos Andes, nos Vales e na Amazônia, e a abundância de exóticos e extravagantes produtos agrícolas não industrializados, de sabores autênticos e de grande qualidade e o calor e a receptividade do povo boliviano fizeram Claus Meyer se apaixonar pela Bolívia. Assim, em estreita colaboração com a organização não governamental dinamarquesa IBIS estabeleceu a Fundação Melting Pot Bolívia.

O restaurante Gustu como destaca o venezuelano de mãe colombiana e pai italiano Michelangelo Cestari “é um dos projetos de Melting Pot em Bolívia (…) que tem atividades diretamente relacionadas à gastronomia e à culinária. Em educação, principalmente, desenvolvendo estratégias pedagógicas. E a nível econômico procurando garantir que tudo seja sustentável e que sejam modelos replicáveis.” A dinamarquesa Kamilla que está há um pouco mais de um ano e meio na Bolívia comenta que a princípio o objetivo era montar um restaurante-escola para que os jovens pudessem se capacitar, mas a riqueza, a qualidade dos produtos e a motivação dos jovens fez com que a Fundação apostasse na criação de um restaurante de alto nível em plena La Paz que ao mesmo tempo seria um centro de formação e capacitação para mão-de-obra local.

Como a missão de Melting Pot Bolívia indica “Somos uma organização sem fins de lucro que promove o desenvolvimento econômico e social sustentável dos setores gastronômico e produtivo da Bolívia mediante a renovação da gastronomia nacional, provendo serviços sociais aos setores mais marginalizados e carentes do país com ênfases nos jovens, com abertura até os distintos atores que envolvem o sector gastronômico boliviano.” Assim, continua Michelangelo a fundação conduz projetos sociais com foco no desenvolvimento da educação e capacitação em nível de higiene, segurança alimentar e empresarial dos estabelecimentos da chamada comida “callejera” nos principais mercados e centros comerciais da Bolívia que repercute na melhora dos serviços e do turismo no país. “Porque a idéia é promover e criar fortuna para eles. Entendemos que deve ser eliminada a concepção de marginal, pobrezinho, coitadinho. Todos nós temos dois olhos, duas orelhas, uma boca e tudo. Todos nós somos humanos e capazes de trabalhar.”

A gastronomia como oportunidade de negócio e motor de mudanças econômicas e sociais. Neste sentido, o projeto Melting Pot Bolívia procura replicar nos altiplanos andinos a revolução da culinária dinamarquesa que teve a inauguração do restaurante Noma como marco (2003). As chaves do conceito e as principais características deste movimento culinário eram a alimentação baseada na sazonalidade e os produtos locais, a agricultura sustentável, volta à apreciação da comida proveniente das paisagens selvagens, unindo gastronomia e nutrição, em um espírito de inclusão. A Dinamarca seguia assim os passos da nouvelle cuisine dos chefs espanhóis que redefiniram a cozinha da Espanha a partir dos anos 1970 com importantes implicações para a imagem, turismo e economia do país.

Revolução similar ocorreu na América Latina com o Peru, Michelangelo observa que a figura de Gastón Acurio é uma referência para o seu país. O sucesso da trajetória do chef peruano e de seus restaurantes (a partir da abertura do Astrid & Gastón de Lima em 1994) colocou o Peru no mapa da gastronomia internacional. Os jovens cozinheiros que preparam os “ceviches” e as “papas” dos pratos da alta cozinha peruana se sentem motivados a buscar empreender e crescer na profissão. Como destaca a Fundação Melting Pot em seu site, “o negócio da alimentação no Peru se compara com uma locomotiva de desenvolvimento, uma cadeia de produção e transformação de serviços que emprega mais de 5 milhões de peruanos, o equivalente a 20% da população economicamente ativa”.

Para finalizar Michelangelo cita o mestre Ferran Adrià, chef do legendário restaurante catalão El Bulli, para quem existem duas culturas gastronômicas prontas para irromper e serem descobertas pelo mundo basicamente pelas mesmas razões: a sul americana e a chinesa. A biodiversidade de seus espaços geográficos e a variedade de culturas que se uniram (melting) em incontáveis matizes e nuances fruto de um processo de miscigenação e mistura de hábitos, costumes e tradições.

Bolívia neste sentido é um campo fértil de experimentação dos conceitos do movimento da “nova cozinha nórdica” que busca provocar uma nova revolução socioeconômica através da gastronomia que caso tenha o alcance e o êxito do ocorrido no Peru pode minimizar substancialmente os problemas de desemprego e renda desde que é o 2ª país mais pobre da América Latina. A sociedade boliviana e a gastronomia do mundo só têm a ganhar com isso.

Por Luiz Alfredo Santos