‘Passava dias sem comer, pela vontade de aprender’, diz pescador de 95 anos

Em parceria com qsocial
23/10/2015 11:45 / Atualizado em 27/10/2015 12:43

Aos 95 anos, Alcides Pedro do Rosário, conhecido como seu Doca, fica sentado na varanda de sua casa, na praia do Itaguá, em Bertioga, com uma toalhinha no ombro, fazendo o que mais gosta atualmente: contar histórias.

Seu Doca e, sobre os ombros, a toalhinha que usava para sinalizar os cardumes
Seu Doca e, sobre os ombros, a toalhinha que usava para sinalizar os cardumes - Cadu de Castro

Reminiscente da cultura caiçara, pescador até cinco anos atrás, saudável e dono de uma memória exemplar, ele diz sentir falta do trabalho. A toalhinha é o sinal mais evidente: nos tempos de pescador, ele era o chamado “espia”, uma espécie de olheiro. Era o responsável por olhar para o mar, da praia mesmo, e identificar onde estavam os cardumes, quais eram as espécies de peixes, para qual direção estavam indo. Tudo a olho nu.

“Eu era o espia, o vigia de pesca e orientava de 30 a 40 pescadores. Eu acordava às 4h, ia para o canto da praia para ver se tinha peixe, qual era. Fazia uma fogueira e, pela fumaça, os pescadores sabiam onde eu estava. Quando avistava o cardume à distância, fazia sinais com a toalha, e assim eles sabiam para onde ir. Dava muito peixe…”, lembra ele.

A vida de seu Doca sempre esteve ligada ao mar. Aprendeu a pescar ainda menino, com o tio e outros pescadores, e com o tempo foi desenvolvendo suas próprias técnicas. Numa época em que não havia muitas estradas nem muitos meios de transporte, caminhar era o meio de locomoção mais usado. Ele conta que chegava a andar 54 km por dia e não achava ruim.

Hoje acha graça quando ouve o neto dizer que vai de ônibus para a praia da Barra do Una, também em São Sebastião (SP), que antigamente era o centro de compras e para onde ele sempre foi a pé mesmo. “A gente andava muito. Era tão bom…. A gente dormia tarde, acordava cedo. De 15 de maio a 15 de agosto, que era a época de pesca, dava pra contar as noites que eu dormia.”

Canoas também ajudavam no transporte. “A gente pegava muito cação, de 80 kg a 90 kg cada um. Colocava numa canoa uns dez, e íamos em três pessoas vender em Santos. Saía umas 10 horas da manhã e ia no remo. Quando era umas 18h, a gente chegava à Barra de Bertioga. Parava, tomava um cafezinho e esperava a maré encher. Umas 4 horas da manhã a gente já estava em Santos, no mercado.”

A chegada dos pescadores era motivo de festa para a comunidade do Itaguá. “Tinha peixe fresco e gostoso. Quando puxava a rede e tinha 2.000, 3.000 tainhas era uma alegria. Pegava uma parte e ficavam dois terços para todo mundo da comunidade. Nunca fui estragado pelo dinheiro. Trabalhar para depois me meter na farra, não. Sustentei minha mãe e meu pai, quando era solteiro. Depois, minha família. Toda a minha vida eu gostei de ajudar os outros.”

Seu Doca é um dos poucos moradores caiçaras do Itaguá a não ter perdido ou vendido seu terreno. Conta que as mudanças na comunidade foram muitas. “Não imaginei que o Itaguá fosse mudar tanto. Antes a gente podia fazer uma rocinha, plantava mandioca, batata, cará. Isso aqui era cheio de cafeeiro. Ninguém comprava café. Açúcar também não comprava, fazíamos de caldo de cana. A gente comia tudo feito por aqui, era tudo puro.”

E emenda: “Hoje a praia é limpa, mas é diferente, esquisita. Você vê muitas pessoas, mas não conhece ninguém. Antigamente tinha pouca gente, mas todo mundo se conhecia.”

Seu Doca na entrada de sua casa, na praia do Itaguá, em São Sebastião (SP)
Seu Doca na entrada de sua casa, na praia do Itaguá, em São Sebastião (SP) - Cadu de Castro

Seu Doca diz que não “tem muita leitura”, mas fez muitas coisas além da pesca nesses 95 anos: cortou lenha, plantou, colheu, pegou palmito… Só a caça foi riscada de sua lista. “Eu não gosto de caçar.” E explica o motivo: “Um dia, dei um tiro num porco. Ele gritou, caiu, levantou e correu. Fui atrás dele, seguindo o [rastro de] sangue. Quando o achei, ele estava parado, parecia morto. Atirei de novo, mas ele fugiu. Não o achei mais, fui embora para casa. À noite, fiquei pensando… Me veio na ideia que dor estaria sofrendo aquele porco. Disse que nunca mais ia caçar. No outro dia, vendi a espingarda e nunca mais cacei. Que sofrimento ele deve ter passado…”

“Tenho muita saudade, muita vontade de pescar. Para mim, ser vigia de praia ou ser mestre de rede de arrastão [ele conserta redes até hoje, sem precisar de óculos] era tudo. Aprendi a ver a qualidade do peixe e a arrumar rede. Tudo tem ciência. Eu passava dias sem comer, pela vontade de aprender.”

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A visita a seu Doca fazem parte do passeio “Memórias Caiçaras”, organizado pela Expedições Terra Brasilis e oferecido pelo programa de turismo social do Sesc SP. O valor é variável, e é preciso checar nas unidades quando o passeio está disponível.

“Há necessidade de subsídio porque o projeto tem por objetivo gerar renda para a comunidade, bem como difundir e valorizar sua história e cultura”, afirma o historiador Carlos Eduardo de Castro. Ele conta que não foi fácil convencer seu Doca nem os outros moradores que recebem os turistas a ficar com a remuneração, mesmo simbólica, de R$ 100.

Outra forma de conhecer seu Doca será por meio de um documentário, que está em fase de produção. “Seu Doca é o que podemos chamar de essência da cultura caiçara, isto é, é a cultura caiçara personificada”, diz Carlos. “O principal é o registro desta memória, que se perderá quando um dia seu Doca se for. Entendo também que é uma espécie de homenagem a ele. Não há objetivos comerciais. Vamos disponibilizá-lo gratuitamente na internet.”