Por um Carnaval livre de racismo; veja como denunciar
Sexualização da mulher negra e piadas racistas são alguns exemplos de casos de discriminação que ocorrem durante a folia
Por Amanda Vitorino, Beatriz Rodrigues Yagui, Fernanda Cseh, Gabriela Biasi, Luana Pereira da Costa, Pamela Michelena e Talita Monteiro Maia, membras da Rede Feminista de Juristas
O que é racismo?
Racismo é o preconceito ou discriminação com base em raça, etnia e características físicas. É um comportamento social historicamente construído, motivo pelo qual não é possível falar em “racismo reverso” de negros contra brancos, por exemplo. Como é um comportamento e uma crença desenvolvido ao longo de séculos, reforçado por leis e Estados durante anos, o racismo é uma estrutura maior do que simplesmente uma discriminação pontual.
O período escravocrata foi marcado por desigualdades e opressões cujas consequências perduram até hoje. Juridicamente, as pessoas escravizadas eram consideradas “bens semoventes” o que para o Direito eram equivalentes a bois. Biologicamente, foram considerados uma raça inferior, a partir do racismo científico. Religiosamente, foram considerados sem alma. Subjetivamente, tiveram sua história aniquilada. Por fim, fisicamente, foram torturados e explorados das mais vis maneiras. Mesmo após a abolição da escravatura, a ideia de que os negros e os indígenas eram inferiores estava estabelecida no consciente de grande parte do mundo. No Brasil, apesar do fim da escravização, a ausência de qualquer tipo de reparação ou indenização a esses povos contribuiu e ainda contribui para a marginalização dos povos negros e indígenas. De fato, a hierarquia racial no Brasil pouco mudou desde o período da escravização, o que reflete em dados concretos de desigualdades socioeconômicas escandalosas.
Dada sua natureza dinâmica, o racismo na sociedade brasileira atual encontrou novas formas de se manifestar: subempregos, genocídio da população negra, restrição de acessos a políticas públicas, erotização do corpo negro, dentre tantos outros modos. Ainda, em média, os brancos têm os maiores salários, sofrem menos com o desemprego e são maioria entre os que frequentam o ensino superior.
O que não pode no Carnaval?
Sexualização da mulher negra
Apesar do aumento de protagonistas negras nas mídias, a presença delas nesses canais costuma ser estereotipada. É comum a representação da mulher negra como objeto de prazer, pedaço de carne, a “mulata exótica gostosa” que por tantos anos foi materializada na figura da “Globeleza”. A mera percepção de que a beleza negra seja “exótica” já é uma percepção racista, pois o significado de exótico é “que não é original do país onde vive” ou “excêntrico”. Num país onde mais da metade da população é negra ou parda, ser negro ou pardo não é exótico nem diferente.
A hiperssexualização da mulher negra também tem origem na época da escravidão, resultado da celebrada “mistura brasileira” que na realidade é fruto de diversos casos de abuso sexual. Além de servir seus senhores durante o dia, lavando e cozinhando, muitas eram forçadas a terem relações sexuais, gerando filhos em decorrência dos estupros que também eram escravizados.
Ainda nessa época, surge a ideia de que a sexualidade da mulher negra é pública e que pode ser violada. Reproduzimos essa concepção em frases do tipo “eu não sou tuas negas”, que trazem a ideia de que com a mulher negra tudo é permitido. A sacralidade da sexualidade é reservada às mulheres brancas, que “merecem mais respeito”. É importante enfatizar que a hiperssexualização também ocorre com homens negros, que são vinculados ao estereótipo de “garanhões”, “bons de cama”, “bem dotados”, dentre outros.
A ideia de que o corpo da mulher negra pode ser violado impacta diretamente nas estatísticas, conforme aquelas publicadas pelo Atlas da Violência de 2018. Segundo o Atlas, a diferença entre a taxa de homicídios das mulheres negras e das mulheres não negras é de 71%. Em relação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%. Para as não negras, houve queda de 8%. Tal pesquisa ainda mostrou que as mulheres negras, pardas e indígenas são as maiores vítimas de estupro no Brasil.
Essa é uma discussão bastante complexa e amplamente presente dentro dos movimentos negros brasileiros. A objetificação e a criação de estereótipos precisa ser abordada, questionando-se os seus impactos na vida das mulheres que sofrem com seus efeitos. Outro efeito importante é o que o movimento negro chama de “solidão da mulher negra”, concretizada nos altos índices das que são abandonadas pelos seus parceiros e/ou são mãe-solos e chefes de famílias.
Piadas racistas
Outra forma comum de discriminação racial são as “piadas” de cunho discriminatório. Muitos dizem que o mundo está ficando chato e “mimizento”. Recomendamos o documentário “O Riso dos outros”, que nos questiona o limite do humor, a dor do outro e a liberdade de expressão.
Em geral, quem pratica o racismo tende a minimizar seu comportamento, alegando ser brincadeira ou apenas uma piada, valendo-se do argumento da liberdade de expressão para tentar reduzir os impactos de falas danosas. Neste ponto, é importante lembrar que o direito à liberdade de expressão não suprime o direito à igualdade, nem consagra um novo tipo de direito que permita a incitação à discriminação racial.
No Brasil, o racismo se manifesta de forma velada, sendo o humor uma das maneiras de expressar este tipo de discriminação de modo aparentemente inofensivo. Por isso, é importante que as “piadas” racistas sejam repreendidas. A agressão exteriorizada em forma de piada dificulta a própria oposição de negros e indígenas, já que o contexto de “brincadeira” descredibiliza ainda mais as dores destes grupos, ao qual o racismo se direciona.
No carnaval, o clima de folia e descontração, que tornam os conceitos morais mais elásticos, acabam servindo de pretexto para práticas inaceitáveis como o racismo e a injúria racial. Por trás de piadas e brincadeiras, existe a realidade de um país em que negros e indígenas são discriminados sem trégua. Por exemplo, em 2018, houve o caso de um folião que tirou uma selfie junto a pessoas negras e insinuou que elas eram ladras.
Para além do racismo praticado por alguns foliões, as marchinhas e músicas de cunho discriminatório se destacam. A marchinha O teu cabelo não nega, de Lamartine Babo, expressa a ideia de que a cor é contagiosa, como se doença fosse:
O teu cabelo não nega mulata/
Porque és mulata na cor/
Mas como a cor não pega mulata/
Mulata quero seu amor
Felizmente, desde 2017, muitos blocos já baniram as músicas e marchinhas com conotação racista. Por outro lado, alguns blocos defendem que as “tradições” devem ser mantidas e que tudo não passa de mera “brincadeira” e “leveza”, relativizando o racismo. No entanto, carnaval não é salvo conduto para perpetuar o preconceito e a discriminação por raça/cor.
Práticas que reforçam estereótipos: “blackface”, “fantasia de índio” e perucas blacks
A representação étnica de grupos minorizados não pode e nem deve ser motivo de riso. O que nos leva a pensar que é legal rir do cabelo, da tradição e dos fenótipos do outro?
O que quis dizer Beyoncé quando cantou “I like my negro nose with Jackson Five nostrils” em Formation? Esse trecho ilustra um pouco do processo que negras e negros vivenciam diariamente no espelho: os tais traços dos quais não se escapa e são motivos de muito orgulho por um lado e de tanto preconceito e chacota por outro.
Na contrapartida do processo de valorização e aceitação de nós mesmos (corpo, cabelo, cultura e ancestralidade), existe a “Blackface” como prática que reforça uma série de estereótipos racistas histórica e estruturalmente constituídos. Ao adiarmos esse tipo de discussão ou taxarmos como “implicância”, mostramos o quão estrutural é o racismo à brasileira, afinal, a defesa de atos racistas são tão ou mais racistas que os próprios. É aquela hora em que os brancos pensam que podem determinar quais atos ou humilhações ofendem ou não.
“Relaxa, é só uma brincadeira”.
O Clássico “Nega Maluca”, que até foi atração principal em show humorístico de uma grande emissora, faz as pessoas negras verem a caricatura dos lábios grossos e escuros e se perguntarem: “O que tem de tão caricato em ser eu? Porque meu corpo só é retratado de forma caricata ou hiperssexualizada?”.
Por muito tempo, nos espaços do movimento negro, tem-se debatido e repudiado essa prática. No entanto, a crítica fica muitas vezes restrita às pessoas negras, a exemplo de tudo o que é considerado “assunto de negro” (a não ser quando convém fazer uso do que é dos negros ou que deles vêm: aí convém à branquitude “brincar” de ser negro).
Até porque ser negro de verdade no Brasil não é nada conveniente. Ser sufocado em um mercado, levar uma gravata ao ir no banco ou ser algemada em uma sala de audiência no exercício da sua advocacia: isso é de verdade. Então não vamos debater para a discussão não ficar séria demais, afinal, é carnaval, certo?
Para ser antirracista o ano todo: respeitabilidade para com o outro
Para ser antirracista, é preciso reconhecer que os brancos ocupam na sociedade os privilégios simbólicos e subjetivos que colaboram para a construção social que marginaliza e reproduz a discriminação racial. É saber que existe um racismo estrutural, um projeto histórico de marginalização da população negra perpetuado ao longo da construção da sociedade brasileira. É válido observar nos blocos frequentados qual o percentual de brancos e negros se divertindo e qual o percentual de negros e brancos trabalhando como ambulante e na limpeza.
Na hora de pechinchar as latinhas de cerveja, os “corotes” e a “catuaba”, pense que aquele momento é a oportunidade que o vendedor tem de levar um dinheiro a mais para casa. É comum pessoas bêbadas atrapalhando o serviço dos vendedores, fazendo xixi na rua ou jogando lixo em qualquer lugar. Tenha consciência e conscientize os seus amigos, trate com respeito os que estão trabalhando e que vão trabalhar para limpar as ruas depois dos blocos.
Ser antirracista significa abrir mão de seus privilégios, é sair da zona de conforto. Assim, se você presenciar uma conduta preconceituosa ou discriminatória, é seu dever se posicionar, ainda que você não seja diretamente ofendido. Seja pró-ativo na defesa do direito à igualdade do outro!
O racismo no ordenamento jurídico
Enfrentar a discriminação racial e o racismo é um dever do Estado brasileiro, comprometido com os termos da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
Uma das políticas importantes sobre essa temática é a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, com o objetivo de dar visibilidade ao papel da população negra na formação da sociedade nacional e de resgatando sua contribuição nas áreas social, econômica e política no contexto histórico brasileiro.
É importante que nós todos e todas monitoremos o cumprimento dessa lei, que, se aplicada com seriedade, permite a conscientização de toda a população e a mudança de padrões de comportamento em direção a uma cultura de respeito e valorização da diversidade cultural.
Outro aspecto importante de ser destacado é a possibilidade de reparação cível quando ocorrem práticas racistas. Além da denúncia na esfera penal, é possível ajuizar uma ação de danos morais. Nesse caso, é necessário a assistência de uma defensora pública ou advogada.
Por fim, também é relevante saber também que, em alguns locais, há leis estaduais ou municipais que tratam da questão. No Estado de São Paulo, por exemplo, há uma lei que prevê punições administrativas, como multa, para pessoas ou estabelecimentos que praticarem discriminação racial.
Como denunciar?
Diversos são os canais disponíveis para denunciar o racismo. Para a denúncia se tornar mais efetiva é importante ter as seguintes informações:
- Anote local, dia e horário em que o fato ocorreu;
- Anote o endereço e o telefone das pessoas que testemunharam o fato;
- Mapeie se na região que ocorreu o fato existem câmeras que possam ter registrado a agressão;
- Em casos de crimes de ódio na internet tire sempre print ou foto da página do agressor para poder apresentar as imagens como prova;
- Se for possível, faça registro audiovisual da agressão.
Para denunciar os crimes de racismo e injúria racial, você deve procurar uma delegacia de polícia. Em alguns locais, há delegacias especializadas no atendimento desses casos, conhecidas como DECRADI – Delegacias de Crimes Raciais e Intolerância. Além de registrar a denúncia na delegacia é possível fazer denúncia através do Disque 100.
Se o crime foi cometido na internet, através de comentários de fotos ou criação de memes racistas, a denúncia pode ser feita pelo site da Polícia Federal ou pelo e-mail [email protected].
Diferenciando Racismo e Injúria Racial
Muito se fala, especialmente nos meios de comunicação, sobre os crimes de Injúria Racial e Racismo. Ambos são crimes previstos no Ordenamento Jurídico brasileiro, entretanto há diferenças entre os dois crimes.
A concepção com a qual concordamos é a que equipara as condutas de injúria racial à prática de racismo, considerando que mesmo quando ofendemos alguém individualmente, ao nos utilizarmos de elementos de raça, cor e etnia, estamos ferindo a coletividade daquela população, já que é óbvio que todos que possuem as características alvo dos insultos se sentirão ofendidas. De qualquer maneira, o mais importante é saber que é crime ofender alguém com elementos pejorativos e discriminatórios relacionados à raça, cor, religião e, etnia, bem como praticar, induzir e incitar a discriminação ou preconceito pelos motivos mencionados.
De acordo com a legislação vigente, como saber se a situação “x” é injúria racial ou racismo?
1) a injúria racial é cometida contra UM INDIVÍDUO.
2) o racismo é cometido contra UMA COLETIVIDADE INDETERMINADA DE PESSOAS.
Podemos trazer os seguintes exemplos de injúria racial e racismo, que repercutiram muito, para ilustrar as definições acima.
A injúria racial está prevista no Código Penal, em seu art. 140, §3º, que traz a seguinte redação:
“Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
Pena – reclusão de um a três anos e multa”
O crime de injúria racial é um crime de Ação Penal Pública Condicionada à Representação, o que significa dizer que a vítima deverá dar início ao processo, através de advogada/o, em até seis meses da data da ciência do fato. Além disso, o crime prescreve em oito anos.
Por outro lado, o crime de racismo é previsto em Lei específica (Lei nº 7.716/1989), que traz diversas condutas que podem ser enquadradas como crime de racismo e comina diferentes penas a depender da conduta do réu. Em tempos de carnaval, é sempre bom lembrar o art. 20 da mencionada Lei:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa
O crime de racismo é de Ação Penal Pública Incondicionada, pois uma vez que atinge uma coletividade, por vezes, não há uma vítima específica para proceder a representação. Deste modo, o próprio Ministério Público terá legitimidade para processar o ofensor. Importante ainda salientar que o crime de racismo é imprescritível e inafiançável, ou seja, não prescreve e a liberdade mediante fiança não é possível, por determinação do art. 5º da Constituição Federal.
Como vimos, ambos os crimes, contemplam a discriminação a qualquer raça e embora tenham diferenças no âmbito legal, em ambos há uma única intenção do legislador: que alcancemos a tão aspirada igualdade de direitos para TODOS, independentemente de raça, cor, etnia ou religião, conforme prevê a nossa tão amada Constituição Federal. Um ótimo Carnaval SEM RACISMO a todos e todas!!!