Ana Cláudia Arruda Leite: ‘A educação deve olhar para as potencialidades da criança’

20/10/2015 20:16 / Atualizado em 04/05/2020 17:45

Por Carolina Prestes Yirula do Instituto Alana

Ana Cláudia Arruda Leite, pedagoga e coordenadora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana.
Ana Cláudia Arruda Leite, pedagoga e coordenadora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana.

Com as mudanças provocadas pelos processos de globalização e de revolução tecnológica, principalmente após meados do século XX, a escola teve seu papel questionado. O modelo tradicional de ensino, com foco na disciplina e no conteúdo acadêmico, onde o professor é visto como único detentor do saber e os alunos como “folhas em branco”, não encontra mais espaço no cenário do século XXI. Marcado por problemas sociais, ambientais, econômicos e políticos complexos e dinâmicos, o mundo atual exige competências e habilidades diversas, que vão muito além do modelo tradicional de ensino, do vestibular e do português e da matemática.

Neste contexto, cabe à escola repensar seu papel e construir novos significados à sua atuação. É necessário revisitar as concepções de educação e compreende-la sob uma perspectiva mais ampla, considerando sua aproximação com outros campos, instituições e atores.

Para mergulhar fundo nestas discussões, a Carolina Prestes escutou Ana Claudia Arruda Leite, pedagoga e coordenadora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana, uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que tem como missão “honrar a criança”. Para Ana Claudia, a escola deve se fortalecer como um espaço de convivência e de leitura crítica e criativa do mundo; capaz de possibilitar tanto a apropriação do patrimônio simbólico e material da humanidade, como a construção de vínculos e de significados para a vida, no âmbito individual e coletivo.

Confira abaixo a entrevista com a especialista.

Hoje muitos defendem a escola em tempo integral, ela seria um modelo interessante e que atenderia as novas demandas do século XXI?

Ana Claudia Leite – Antes de tudo é fundamental distinguir educação integral de escola em tempo integral. A educação integral é uma concepção de educação e não um modelo. Ela foca no desenvolvimento pleno do ser humano, ou seja, nas suas múltiplas dimensões (intelectual, corporal, ético, estético e político), por isso integral, do latim integrālis (inteiro, total). Além disso, nessa abordagem a escola é vista como um dos espaços educativos e não o único, e é pensada a partir do diálogo com seu território, onde os diferentes sujeitos, espaços e tempos são reconhecidos no processo de ensino-aprendizagem.

A escola em tempo integral tem relação com esta discussão, no que tange à expansão do tempo e até de possibilidades formativas, mas dependendo de como ela for proposta pode não significar uma educação integral no sentido pleno, visto que a institucionalização traz consequências complexas que podem impactar negativamente a educação e a saúde, psiquica e física, dos bebês, crianças, adolescentes, jovens e professores. Vale lembrar que, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a profissão docente é hoje considerada como uma das mais estressantes, além de ser a segunda do mundo a portar doenças de caráter ocupacional.

Precisamos olhar para essas condições atuais da escola e buscar caminhos efetivos e viáveis de transformar a escola num real ambiente educativo, saudável, inclusivo e inspirador para todos. Isto passa por repensar muitas dimensões e não apenas a extensão do tempo que a criança ficará dentro da escola. É preciso olhar o currículo, a arquitetura, a formação e condições de trabalho dos professores, a valorização da criança como sujeito, a inclusão, bem como a integração entre educação, arte, cultura, esporte, saúde.

Sob o olhar da educação integral, educa-se então em diversos lugares, diversos tempos e ao longo de toda a vida. A escola acolhe essa visão de educação?

AC – As escolas realizam práticas diversas de acordo com suas equipes e o modo como trabalham, mas a educação integral parte de um pressuposto que está na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adoslescente (ECA) e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de que a educação no Brasil é um direito de todos e uma responsabilidade da família, do Estado e da sociedade no geral; não restrita, portanto, aos muros da escola. Assim, a educação que se faz dentro da escola deve olhar para o desenvolvimento integral da criança, considerando aspectos simbólicos e materiais, que juntos compõe o ambiente educativo e a subjetividade de cada ser humano.

Do ponto de vista teórico e legislativo, já temos respaldo para pensar a educação nessa perspectiva, como também para pensar a escola na relação com seu entorno. O sujeito se faz como tal na sua relação com o outro, portanto, o diálogo com a diversidade está, inevitavelmente, implícito à prática educativa. A educação integral traz luz para isso e enxerga os diferentes contextos em que os alunos estão inseridos como potências para a aprendizagem. Iniciativas como o Centro de Referências de Educação Integral, do qual o Alana participa junto com outras organizações sociais, tem um papel fundamental nesta discussão.

O que estamos fazendo com as crianças dentro das escolas?

AC – Vivemos um momento paradoxal na educação brasileira. Presenciamos uma melhoria na garantia de acesso à escola (hoje temos praticamente universalizado o acesso ao ensino fundamental e a educação infantil começa a entrar nesse processo), contudo, o desafio da qualidade e da transformação ainda se faz presente. Algumas escolas já estão buscando alternativas a esse desafio e repensando seus projetos político-pedagógicos, a fim de colocar em pauta discussões importantes, como a reformulação do currículo e do sistema de avaliação, além de trazer à luz temas como inclusão e diversidade.

Neste movimento de repensar o papel da escola, estamos corealizando com a Ashoka o Escola Transformadoras, um movimento global que busca conectar escolas que estão criando novos paradigmas na educação, rumo a uma aprendizagem verdadeiramente transformadora. Temos descoberto muitas escolas incríveis no Brasil e no mundo, que possibilitam a formação de sujeitos criativos, empáticos, críticos e engajados. Acreditamos que as experiências destas escolas precisam ser reconhecidas, sistematizadas e divulgadas, pois dão importantes pistas para avançarmos nesta discussão sobre qual escola queremos no século XXI.

O que seria – dentro do contexto brasileiro – uma educação transformadora?

A educação integral foca no desenvolvimento pleno do ser humano, ou seja, nas suas múltiplas dimensões (intelectual, corporal, ético, estético e político), por isso integral.
A educação integral foca no desenvolvimento pleno do ser humano, ou seja, nas suas múltiplas dimensões (intelectual, corporal, ético, estético e político), por isso integral.

Dentro do contexto brasileiro existe algo muito importante a ser feito: olhar para a própria história. Olhamos muito pra fora e nos esquecemos de identificar o que aconteceu e o que acontece de inovador em termos de educação no Brasil. Temos experiências incríveis por aqui. É preciso recuperar os autores e as experiências pedagógicas significativas e comunicar estas boas referências. O desafio é como sistematizar e contar esta história de uma forma consistente, inspiradora e de fácil acesso para que consigamos construir novas narrativas, mudando a mentalidade e expectativa do que seja uma boa escola. E isso não é um assunto exclusivo de pedagogos e profissionais da educação, ele é de todos na medida em que a educação é um direito e um dever da família, do Estado , da escola e da sociedade.

A mudança de mentalidade é fundamental porque apesar de existirem exemplos inspiradores, de vanguarda, o que se tornou universal foi um modelo de educação enraizado ao conceito de escola do século XIX. Assim, a expectativa que a família, a mídia e sociedade têm é de uma escola “forte,” “séria”, que prepara para o vestibular. Ou seja, nada mais do que a escola tradicional. Hoje, espera-se que a escola no Brasil garanta o mínimo: ensino da matemática e alfabetização, como se isso fosse suficiente. É preciso mudar essa cultura e estabelecer uma expectativa de aprendizagem maior, que envolva outras linguagens expressivas, competências e habilidades.

Vivemos então um paradigma: do ponto de vista legal existe a possibilidade de a escola construir um projeto pedagógico autônomo e focado no desenvolvimento integral; em contrapartida, as pessoas que estão nas escolas e fora dela não sabem disso e esperam da escola a continuidade do modelo tradicional, mesmo que já seja um consenso de que se trata de um modelo falido, que não serve nem mais para a reprodução do sistema, que dirá para uma transformação social.

Atravessar as barreiras simbólicas da escola seria uma grande transformação, mas também um enorme desafio. 

Quais são os maiores desafios do campo da educação?

AC – Há muitos desafios no campo da educação, que abarcam desde questões relacionadas ao paradoxo quantidade/qualidade, até a forma de contratação de professores e arquitetura da escola. Precisamos reconhecer o avanço nas políticas públicas para universalizar o acesso à educação, contudo o desafio é fazer isso sem perder a qualidade e sem institucionalizar o processo educativo. A escola não é prédio, mas um ambiente de aprendizagem, que possibilita a convivência, a construção de vínculo, de significados e de sentidos.

A escola deve ser um espaço autoral, e tudo o que é autoral exige um tempo maior de entrega e envolvimento. Não apenas para o aluno, mas também para o professor. Como construir um projeto político-pedagógico sem conhecer o entorno, as diferentes culturas que estão dentro da escola ou mesmo os próprios colegas de profissão?

Hoje é comum o professor assumir mais de uma jornada de trabalho, o que interfere na construção desse espaço autoral, individual e grupal. Ao dar aulas em diferentes escolas o professor não se sente pertencente a nenhuma, e isso é um desafio para a qualidade da educação, pois impacta na possibilidade real de se construir projetos pedagógicos coletivos. A qualidade também está ligada a possibilidade de se ter uma equipe forte, que elabore um trabalho consistente, coeso e continuo, capaz de estabelecer vínculos com as crianças, suas famílias e com a comunidade.

Agora, imagine uma escola que atende até 3 mil crianças, com mais de 200 professores e muitos sem dedicação exclusiva, como ser um espaço autoral e de convivência, sem uma equipe forte? Como ser uma comunidade de aprendizagem se não temos tempo e espaço adequado para nos reconhecermos e nos conhecermos como coletivo?

Acredito que precisamos sim transpor os muros da escola no que tange à espaço e tempo, concretos e simbólicos, mas tão importante quanto isso é fortalecer a escola como uma comunidade de aprendizagem, construída por sujeitos, pois ela é, antes de tudo, espaço de relação humana. Sem afeto, vinculo e socialização, a educação se desumaniza.