Capoeira na escola é uma janela para a desconstrução do racismo
Brincar de princesa, de dinossauro, de monstro, de jogador de futebol, mas também de Zumbi dos Palmares. Aprender a usar o corpo no ritmo do berimbau em um jogo dançado. Fortalecer a autoestima com novos referenciais. Ampliar visões de mundo. Aproximar crianças, brancas e negras, da cultura africana. Levar a Capoeira para a Educação Infantil traz um pouquinho disso tudo, e muito mais. E essa é a proposta do projeto Brincadeira de Angola.
Desde 1998, o projeto leva a Capoeira para crianças do Brasil e de outros países, por meio de aulas em escolas públicas e particulares, e em projetos sociais de acolhimento de crianças refugiadas e em situação de vulnerabilidade, e também atua na formação de professores de todo o mundo ministrando cursos pagos e gratuitos.
- Em 2014, a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) declarou a roda de Capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Ancorada no conceito da educação integral e desenvolvimento das potencialidades sócio-artísticas-culturais das crianças, a abordagem proposta pelas aulas da Brincadeira de Angola não coloca o foco na atividade física, mas sim no objetivo de apresentar às crianças o caráter lúdico e a historicidade da Capoeira.
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“Quando a gente trabalha com crianças, trabalhamos nesse mundo simbólico, no mundo da fantasia e para isso utilizamos todo tipo de recurso teatral, desde fantoches, bolas e contação de histórias”, explica Aline Cristine da Silva, capoeirista e professora do método.
Nas aulas de Capoeira não são só as crianças que aprendem, os adultos também aprendem muito sobre o universo da infância e sobre como as crianças olham e se percebem no mundo.
“Aprendi muito sobre empatia. Quando a criança chega chorando, ela está precisando de alguém que entenda o seu sentimento. Quando vou trabalhar uma simples parada de mãos, é muito mais do que o desenvolvimento de uma capacidade motora. Para executar este movimento a criança terá que enfrentar sentimentos como medo, insegurança e frustração, trabalhando a tolerância ao erro, a resiliência e a capacidade de autossuperação”, explica.
O método da Brincadeira de Angola foi criado pelo Mestre de Capoeira Omri Ferradura Breda. Para ele, o trabalho com a capoeira nas escolas é importante para crianças brancas e negras, pois abre uma janela de conhecimento e valorização da cultura negra, e consequente trabalho de desconstrução e combate a práticas racistas presentes na sociedade.
“A valorização da cultura negra acontece em um processo de emancipação mental, descolonização simbólica e desconstrução de valores racistas. Crianças brancas precisam de referenciais positivos negros para compreenderem como podem vir a ser agentes de transformação dentro da sociedade que as privilegia. Crianças negras precisam destes mesmos referenciais para fortalecerem sua autoestima, construírem uma história e terem ferramentas para enfrentarem o racismo”, disse Omri.
Como mulher negra, Aline reforça a importância do trabalho com a capoeira para desconstrução de valores racistas e estereótipos de gênero. “Trabalho em escolas onde a maioria das crianças são brancas. E estar nesses lugares sendo mulher e negra é muito importante para as crianças e para mim também, por poder levar a nossa cultura para esses lugares e estar conscientizando as crianças brancas e empoderando as crianças negras. Porque a representatividade de forma positiva é muito importante”, disse.
“A aula de capoeira não é remédio. É linguagem artística”
Mas Omri alerta para a falsa ideia de que ter aulas de capoeira é um caminho definitivo para acabar com o racismo. “A aula de capoeira não é ‘remédio'”, afirma. Nesse sentido, o projeto político pedagógico da escola deve estar, também, comprometido com o combate ao racismo.
“A primeira imagem de personagens negros em livros didáticos é em situações a-históricas, posto que não se apresenta a História pré-colonial africana, em sua riqueza e diversidade. Os africanos de diversas origens são chamados pelos nomes genéricos de ‘negro’ ou ‘escravo’, e sua cultura é apresentada como selvagem. As fotos ou gravuras em que aparecem são sempre relacionadas à escravidão ou a papéis subalternos na sociedade moderna, como faxineira ou porteiro. Os valores que estigmatizam a população negra são confirmados pela educação escolar em diversas ações e omissões”, explicou.
Um reflexo disso são situações de racismo vivenciadas dentro do ambiente escolar. O mestre de Capoeira comenta que já presenciou momentos de discriminação entre as crianças durante suas aulas. “Nestes casos sempre cabe reflexão e ação específica com pequenas rodas de conversa, tentando ajudar a conscientizar, mas tendo a clareza de que a aula de capoeira não vai resolver os problemas de racismo na sociedade”, disse.
Ainda assim, entendendo o espaço da aula de capoeira como um momento de expressão de uma linguagem artística, cultual e política, Omri vê no seu trabalho potência para contribuir para um futuro melhor.
“Uma criança criada em um ambiente de valorização de heróis negros, cantando músicas que ressaltam positivamente personagens negros e vendo mestres negros durante sua formação terá referenciais positivos para se espelhar e construir uma autoimagem positiva. Isso aumenta a chance desta criança vir a ser um adulto consciente e um agente de transformação social”, finalizou.
Aline concorda: “Me faz pensar que a capoeira nos leva a reconhecer e aceitar o outro com as suas diferenças e isso é muito bacana”.