Conheça Alberto Costa, o cientista brasileiro que lidera pesquisa pioneira sobre síndrome de Down

Por Helaine Gonçalves do Instituto Alana 

Segundo o médico e neurocientista Alberto Costa, 50 anos, sua vida poderia facilmente ser representada por um constante estado de confusão mental. “Rabiscos, cores… Nenhum fundo poderia ser melhor escolhido para retratar a bagunça que é a minha cabeça. É quase um autoretrato, é puramente meu estado mental”, ironiza ele. E foi em meio a esta suposta desordem que o Dr. Costa tornou-se uma das maiores referências na pesquisa sobre síndrome de Down pelo mundo. Ao todo, são 17 anos de pesquisa, 30 artigos científicos publicados, um doutorado e estudos diferenciais focados na melhoria da qualidade de vida de quem tem a síndrome – e não no diagnóstico precoce. Atualmente residindo nos Estados Unidos e trabalhando na Universidade de Cleveland, seus esforços se concentram na busca de um tratamento farmacológico para prevenir a precocidade da doença de Alzheimer em pessoas com a síndrome de Down. Essa pesquisa apresentou grandes avanços cognitivos em sua fase piloto, rendendo uma parceria com o Instituto Alana para que seja ampliada e siga no seu caminho de testes. A grande motivação para tanto trabalho vem de casa e se chama Tyche, sua filha com síndrome de Down e orgulho do pai-babão. Batemos um papo com este pesquisador brasileiro em sua rápida passagem por São Paulo, poucas horas antes de embarcar para sua casa nos Estados Unidos.

O Instituto Alana foi a primeira instituição brasileira a financiar um estudo com um medicamento no exterior. O que justifica esse cenário?

As pessoas precisam entender que os financiamentos à pesquisa nos Estados Unidos atualmente são idênticos aos níveis de suporte dados há 10 anos atrás. Não houve evolução. A infraestrutura do país cresceu, a inflação aumentou, mas nada mudou nos laboratórios. Desde a administração de George Bush, o apoio à pesquisa vem diminuindo muito por lá. No passado, você tinha uma probabilidade entre 25% e 30% para conseguir uma verba para seus estudos. Hoje em dia, essa porcentagem beira 8% no Instituto Nacional de Saúde Infantil e Desenvolvimento Humano, principal agência de fundos para pesquisas sobre a síndrome de Down. Virou uma loteria. Com tanta dificuldade, as pesquisas sobre câncer acabam despertando mais interesse do que as pesquisas sobre síndrome de Down

As doenças cardiovasculares também passam a ser mais importantes do que a síndrome de Down. Qualquer pesquisa mais restrita, que atenda somente um sub-grupo da população, acaba sem suporte. O que está acontecendo agora é que muitos laboratórios conceituados estão literalmente fechando nos Estados Unidos. Vivemos em um momento único, pois o fomento está vindo de outros lugares. O Alana foi a primeira ONG brasileira a apoiar um ensaio clínico razoavelmente grande, seguindo a tendência de outras instituições mundiais. Minhas pesquisas contaram com verba de um instituto francês, outro do Canadá, de Malta… Ano passado famílias na Itália iam fazer uma festa de Natal grande, mas resolveram coletar dinheiro para mandar para o meu laboratório…

 E por que optar por realizar parte dos estudos no Brasil?

Obviamente o fato de eu ser brasileiro foi uma grande influência. O financiamento vir de brasileiros também foi outro fator decisivo. Mas também soma o fato de o Brasil ter uma das maiores clínicas do mundo focadas na síndrome de Down – em termos de números absolutos de pacientes – liderada pelo Dr. Zan Mustachi. Tudo isso exerceu uma grande influência na minha decisão.

Como o Alzheimer acabou virando seu principal objeto de estudo?

Obviamente tem o ponto de vista pessoal. Eu tenho uma filha com síndrome de Down que está com 18 anos. Mas, por outro lado, justamente por essa relação eu não queria estudar esse tema. Como todo bom pai, a gente tende a ignorar o óbvio, tende a evitar coisas difíceis de aceitar. Por isso o Alzheimer não era diretamente o meu foco de interesse, mas a biologia acabou me levando a isso. Este tema é basicamente uma mistura de pesquisas genômicas e neurobiológicas que me levaram a crer que poderiam ser potencialmente exploradas. Os dados estavam gritando na minha cara, mostrando que esse seria um alvo importante de estudos. E em termos de patologia no cérebro, a síndrome de Down é a causa mais precoce da doença de Alzheimer que existe. Existem vários artigos publicados documentando sobre a incidência da patologia de Alzheimer em crianças muito novas, de 8 anos de idade por exemplo. E a patologia de Alzheimer torna-se virtualmente universal em todas as pessoas com síndrome de Down aos 40 anos. Eu falo da patologia instalada lá no cérebro, independente da manifestação clínica. Já a escolha da memantina (medicamento estudado por Alberto Costa em sua pesquisa) surgiu por ser uma droga aprovada na União Européia, nos Estados Unidos e no Brasil, referência para tratamento de Alzheimer.

 Estamos então falando de condições genéticas cada vez mais associadas entre si?

Sim, mas existe um problema político em relação a isso. Durante muitos anos, a comunidade que estudava síndrome de Down foi excluída dos estudos da doença de Alzheimer. Quando eu estava começando a estudar a síndrome de Down há 17 anos, os artigos com cerca de cinco anos de publicação observavam que era muito importante estudar a síndrome de Down como um bom modelo para o avanço dos estudos do Alzheimer na população em geral. E, obviamente, eu como pai não gostava muito da ideia. Estavam falando da condição humana como modelo de outra condição humana. Sendo que, ao falarmos de modelo, é sempre para animal, camundongo. Minha filha não era um animal. De certa forma, isso me irritava um pouco. Mas logo alguns artigos começaram a falar que não existia nada em comum entre o Alzheimer e a síndrome de Down. Depois surgiu uma dicotomia com patologistas dizendo que existiam alterações compatíveis entre a síndrome de Down e a doença de Alzheimer, mas só os neurologistas ou psiquiatras especializados poderiam atestar o diagnóstico final. E os artigos de neurologistas e psiquiatras atestavam também a correlação, mas diziam que somente os patologistas poderiam atestar precisamente. Há 3 anos, no entanto, aconteceu uma grande mudança. Quatro drogas ou compostos que estavam sendo desenvolvidos por companhias farmacêuticas para Alzheimer falharam. Tudo no mesmo ano, mostrando que talvez estivessem atacando a consequência no lugar da causa. Com isso, começaram a tratar o Alzheimer mais cedo, e não aos 85 anos. E foi neste momento que o pessoal voltou a descobrir a síndrome de Down. Viram que focando nas pessoas com trissomia 21, o estudo estaria focado em uma causa homogênea do Alzheimer. Interessante que esse subgrupo, ignorado por anos e que desenvolve a patologia de forma precoce, muito provavelmente vai ajudar a população em geral no futuro. Por isso que reforço a necessidade da síndrome de Down ser cada vez mais abraçada pela comunidade científica que estuda o Alzheimer. O impacto gerado no futuro será grande.

Médico e neurocientista Alberto Costa

Em 2012, uma pesquisa inglesa realizada com adultos  com síndrome de Down considerou ineficaz o uso da memantina no tratamento do Alzheimer. Este resultado impactou seus estudos?

Não teria como. Nossas pesquisas não poderiam ser mais diferentes, apesar de usarem a mesma droga e o mesmo subgrupo da população. A pesquisa deles focou em um grupo com mais de 40 anos. Fizeram um estudo grande, com mais de 150 pessoas com síndrome de Down, com uma diversidade enorme. Alguns manifestavam demência, outros tinham dor por ter artrite ou artrose.

Alguns já tomavam psicotrópicos, tinham quadros de convulsão. De certa forma, o estudo não foi bem desenhado. Todas essas pessoas entraram na análise. Eles também ministraram metade da dose de memantina aprovada para o tratamento de Alzheimer – escolha que eu não entendo. Apesar destes problemas, não tenho dúvida de que este foi o melhor estudo que eles conseguiram fazer.

O nosso estudo vem da biologia, com resultados pré-clínicos nos modelos de camundongos com síndrome de Down, que apresentaram melhora de aprendizagem e memória. Tanto que outros dois grupos de cientistas já foram capazes de reproduzir nossos estudos. Isso mostra que temos um suporte científico bastante forte. Outra diferença é que queremos evitar tratar a doença de Alzheimer tardiamente, como fez o pessoal da Inglaterra. Nossa média de idade é de 23 anos, com um desvio padrão de um ano e meio. Basicamente adultos-jovens, supostamente sem terem desenvolvido a patologia de Alzheimer. Outro ponto importante é que descobrimos, muito antes dos neuropsicólogos, que o hipocampo não exerce todo seu potencial nas pessoas com síndrome de Down. O hipocampo tem uma função associada à memória espacial e à memória episódica, que é a memória autobiográfica. Por isso, fizemos um estudo piloto com o uso da memantina para gerar informação antes de simplesmente rodar a pesquisa em um grupo maior. E, com isso, observamos que a droga não gerou nenhum efeito na memória espacial, mas impactou positivamente na memória episódica das pessoas com síndrome de Down.

Este estudo piloto registrou melhoria na memória episódica de 10 vezes. Qual o impacto deste índice na vida de uma pessoa com síndrome de Down?

Essa é uma boa pergunta e a gente não tem a mínima ideia da resposta. Estamos agora planejando o próximo passo da pesquisa, que visa avaliar um grupo maior, permitindo um poder estatístico forte para comprovarmos ou não a melhoria na memória episódica. Só responderemos essa pergunta com precisão em outra fase do estudo, dentro de um espaço-tempo maior. O problema de você tentar ver como uma droga afeta a vida de um indivíduo é que isso exige uma amostra temporal longa… E neste outro estudo, eu espero que o Alana também esteja presente – mas acho injusto a instituição estar sozinha. Era interessante uma parceria que envolvesse o governo americano e o brasileiro. Estamos de falando de um estudo razoavelmente prolongado e com uma pergunta específica: vemos modificações benéficas na qualidade de vida da pessoa com síndrome de Down se usarmos a memantina por cerca de 20 anos? No piloto, vimos uma melhoria na memória episódica; agora, vamos tentar comprovar isso em um estudo maior. O que pode acontecer é que a melhora signifique que a pessoa só virou um papagaio, capaz de listar palavras. Se for só isso, o medicamento não vale a pena…

É possível estimar um prazo para estes resultados?

O próximo passo deve terminar em cerca de três anos. Depois, no que seria o nosso terceiro passo, ou seja, essa pesquisa maior, precisaríamos de mais tempo. Esse é o problema em pesquisas sobre envelhecimento: ter que esperar que a pessoa envelheça para avaliar se deu certo. Geralmente, falamos de pesquisas por 10 a 20 anos. É muito fácil realizar estas pesquisas em minhocas ou outros modelos de animais, tipo o camundongo, que têm uma vida curta. Mas o ser humano vive em média 70 anos, automaticamente os estudos demoram. Existem outros modelos de pesquisa que podem ser aplicados para acelerar os resultados. Por exemplo: qual grupo aprende mais em cerca de 6 meses? Se o grupo da memantina aprender mais do que o grupo placebo, pode ser um resultado. Seria uma prévia, porque o grande estudo é necessário pra ver a trajetória de desenvolvimento completo.

Existem outros medicamentos que merecem ser estudados dentro desse escopo?

Existem duas drogas razoavelmente promissoras que estão sendo testadas pela Roche e por um grupo australiano chamado Balance Farmaceutical. Os dados ainda não apareceram, mas em termos teóricos, o que aconteceu no modelo animal foi bastante promissor. E é interessante termos estes enfoques diferentes dos envolvidos com a memantina. Quem sabe não estamos falando de drogas complementares? Talvez o próximo passo seja uma terapia multidroga para maximizar o efeito cognitivo. Outro grande avanço, como já falei, seria se os grupos que estudam Alzheimer se interessarem mais e mais pela síndrome de Down. Essa parceria só tende a crescer no futuro.

As pesquisas para síndrome de Down estão cada dia mais focadas no diagnóstico, em uma possível prevenção, mas pouco se fala na melhoria da qualidade de vida. Estamos nos encaminhando para uma drástica diminuição no número de pessoas com síndrome de Down no mundo?

Talvez. Existem muitos grupos que estão tentando conscientizar os pais exatamente das habilidades e possibilidades do indivíduo com síndrome de Down. Mas eu acho que isso não modifica o quadro significativamente… Para mim, é fundamental alterarmos o curso da síndrome de Down, os déficits cognitivos associados. E é neste momento que entra a medicação. Imagina seu filho indo para uma universidade? Arranjando um trabalho que cada vez mais dependa de suas capacidades cognitivas? Você vai ter pessoas com síndrome de Down trabalhando com você, vai sair com alguns para bater um papo, falar sobre o jogo do Palmeiras… São essas realidades que mudam a sociedade. É claro que a conscientização é fundamental, mas precisa vir associada aos estudos científicos. Estas duas abordagens precisam convergir, apresentando uma mensagem que seja essencialmente positiva. Quem sabe assim estes abortos possam acabar… Se a gente não conseguir em tempo, essa subpopulação vai praticamente sumir em 5 a 10 anos. Tem quatro companhias dos Estados Unidos que conseguiram o direito de comercializar testes pré-natais para diagnosticar a síndrome de Down. Os testes não são invasivos e  são muito precisos. Então, o que está acontecendo é que certas companhias de seguro estão começando a cobrir estes exames. Alguns estados já exigem que estes testes sejam feitos. É claro que, quanto mais testes forem feitos, mais baratos eles ficarão. Quando passarem a custar U$200 ou U$300, logo virarão universais. Uma vez universais, a tendência norte-americana de aborto em 90% dos casos após o diagnóstico só tende a piorar.

Está sendo recorrente no Brasil o tratamento da síndrome de Down com o protocolo experimental de remédios controlados, muitas vezes sem nem haver a manifestação clínica de certas doenças. Quais as vantagens destas terapias?

As pessoas deveriam estar mais empenhadas em gastar esse dinheiro apoiando pesquisas. O meu problema com o uso indiscriminado de medicação é que as coisas são usadas sem nem sabermos se elas funcionam ou não. Usar medicamento sempre envolve algum tipo de risco e, pra piorar, você está expondo uma pessoa ao risco sem saber se existe algum benefício. É um uso extremamente irresponsável. No final das contas, o que acontece é que milhares de pessoas acabam fazendo uso de certas drogas e, cientificamente, não conseguimos extrair dados sobre o funcionamento ou não da medicação. E o agravante: pensam que, se um medicamento faz bem, três fará melhor ainda. E ignoram que na Farmacologia Clínica existem riscos de um medicamento associado a outro. Cruzando dois medicamento existe uma interação química entre eles de 18%. Com três drogas, este índice sobe para 30%. E tudo vai ficando cada vez mais perigoso e ainda sem o efeito positivo comprovado.

O que temos são basicamente testemunhos de pais dizendo que o filho melhorou. Só que parte dessa melhora é simplesmente uma esperança não fundamentada. Infelizmente a origem da inserção do Prozac nestes coquetéis surgiu no meu próprio laboratório. Fizemos um estudo no modelo camundongo com síndrome de Down, mostrando que esse medicamento restaurava o fenômeno da neurogênese. Só que ninguém dá atenção para a outra face da moeda. É que este mesmo medicamento possibilita uma aceleração dos processos neurodegenerativos associados à síndrome de Down. Se falarmos em uma aceleração com aumento da taxa em 30%, isso significa que ao invés do seu filho desenvolver a doença de Alzheimer com quase 40 anos, irá desenvolver a patologia com 25 ou 30 anos. Se você der essa droga por 3 anos, você não vai sentir nenhuma diferença. Vai demorar 10 anos ou mais pra você ver a besteira que fez. Além disso, pela falta de um ambiente controlado cientificamente, de repente vai ter um bocado de pessoas que aderiram ao mesmo experimento, com 25 ou 30 anos, usando fralda e babando. Vai virar uma epidemia nas pessoas com síndrome de Down. O que foi isso? Nessa hora ninguém vai saber. É claro que as pessoas tem as melhores intenções com seus filhos, mas o problema é que você faz, conta pro outro, que contra pro outro, e assim por diante. Vira uma moda, todo mundo fazendo em conjunto. E daqui a pouco você causou mal não somente ao seu filho, mas a centenas de milhares de pessoas.

Como foi para um médico receber o diagnóstico da filha com síndrome de Down?

Mais complicado impossível. O parto foi delicado, transformando nosso desejo de ter filhos em uma experiência única. Minha esposa teve um acidente durante a anestesia, que causou um bloqueio espinhal praticamente completo. Ela teve parada respiratória, teve que ser entubada. Eu ainda tive que ajudar o anestesista, que por alguma razão começou a tremer, não conseguia entubá-la. Eu ajudei a entubar minha própria esposa. Eles começaram a fazer tentativas para ela respirar novamente. Fizeram uma cesárea de emergência, não era o que a gente estava esperando. Ela estava a beira da morte quando minha filha nasceu. É claro que nessa hora, por mais instinto paterno que exista, você está mais pensando na sua esposa do que qualquer outra coisa. Eu queria mais é saber se ela sairia viva! Acabei vendo a Tyche rapidamente, não notei nada. Eu não tinha a experiência que tenho hoje. E a maioria das pessoas naquele berçário não conseguiu identificá-la como uma criança com síndrome de Down. Hoje, vendo fotografias da Tyche pequenininha, teria identificado facilmente. Mas são os olhos resultantes de anos de experiência…

Minha esposa demorou cerca de 7 horas até voltar à consciência. Foi quando eu mostrei uma filmagem que tinha feito da Tyche e depois a enfermeira a trouxe. E a Daisy (esposa), com um bom instinto de mãe, achou alguma coisa muito esquisita, sem saber exatamente o que era. Finalmente, depois de 13 horas, chegou um geneticista para nos dizer que era muito provável que nossa filha tivesse síndrome de Down. Tudo isso aconteceu em um único dia! Como bom cientista, perguntei ao médico que tipo de probabilidade ele associava à afirmativa. E tive que ouvir: “99% de chance”. Já nessa hora, tive que ouvir também um texto enorme: “A pessoa com síndrome de Down tem isso, isso, aquilo, aquilo. Temos algumas associações de pais para lhe dar suporte e logo mais traremos alguns folhetos. Boa sorte”. Até que o médico saiu. Tudo isso não deve ser muito diferente do que ocorre hoje… Bom, e aí me deparei com minha esposa, que tinha quase morrido, aos prantos.

Como teria sido o jeito ideal de receber a notícia? Existe uma forma correta para o diagnóstico ser passado aos pais?

Alberto Costa estuda a memantina, componente de remédios para o mal de Alzheimer, melhora a memória de pessoas com síndrome de Down.

Eu realmente não sei. Claro que a gente tem que tentar ser o mais positivo possível, mas sem ofuscar a realidade. Uma das coisas que a criança com síndrome de Down mais precisa nos primeiros dias é de cuidados especializados. Por exemplo: se o bebê tiver catarata e ela não for retirada logo no começo, isso vai afetar sua vida para sempre. Vai, inclusive, afetar sua habilidade motora. É preciso agir rápido. Outro ponto é o hipotireodismo ou hipertireodismo. Sem tratar desde cedo, estas doenças podem impactar dezenas de pontos no QI (Quoficiente de Inteligência) que essa criança poderia ter. Se certas má formações cardíacas ou intestinais não forem verificadas, podem levar à morte. Então, se você só conta histórias que falam da parte positiva, você não alerta os pais que existem certas doenças associadas à síndrome de Down, que são mais comuns do que na população em geral. E não falar disso é muita irresponsabilidade.

É claro que os primeiros dias são críticos. E é essa a dicotomia de tudo, pois não importa o que falarem, você não estará pronto para essa notícia. Para uma informação ser transmitida, é necessário um transmissor e um receptor. Se o receptor não está pronto, a informação não é transmitida. Mas as pessoas são tão diferentes! Certos pais vão receber a informação da pior forma possível e serão pouco afetados. Outras pessoas receberão da melhor forma possível, mas sofrerão o impacto por muito tempo – principalmente se  já tiverem uma ideia muito bem formada, muito solidificada, muito cristalina sobre a síndrome de Down. Até este cristal se dissolver vai demorar muito tempo… Precisará de muito convívio com o filho. Como médico, eu tinha uma visão cristalizada, e demorou até quebrar meus próprios preconceitos e minha própria falta de informação. Se eu recebesse qualquer papelada naquela época, provavelmente rasgaria, não na sua frente. Mas, hoje, acho que eu até rasgaria na sua frente mesmo – naquela época eu era mais tímido [risos]. Eu não era o melhor tipo de pessoa pra receber qualquer informação. O que eu sentia era extremamente negativo.

Que conselho daria para um pai que acabou de receber um diagnóstico de síndrome de Down no filho?

Eu diria que vai melhorar. O que quer que você esteja sentindo agora, vai ficar melhor. E além disso, seu filho está nascendo em uma época onde sabemos muito mais sobre a síndrome de Down. Eu acho que finalmente a ciência e a medicina baseada em evidências vão começar a causar um impacto positivo na qualidade de vida das pessoas com síndrome de Down. Pessoas que vivem com síndrome de Down atualmente terão uma qualidade de vida muito melhor em relação aos que nasceram há 20 anos. Nos próximos 10 anos, eu não diria que o céu é o limite poque eu não gosto de dar esperanças falsas, mas eu diria que os limites serão muito mais altos do que hoje. Então, tente reduzir seus preconceitos, tente aumentar o escopo de suas expectativas porque existem grandes possibilidades do seu filho te surpreender de múltiplas formas. Não só em termos de inteligência, mas no contato humano mesmo… Essa criança vai te impactar de uma forma ou de outra.

A Tyche mudou a vida do Alberto Costa?

Absolutamente. Eu não seria a pessoa que sou hoje em vários sentidos. Em termos profissionais, ela me transformou em um cientista melhor do que eu seria de qualquer outra forma, um profissional com uma visão mais globalizada de Ciência do que jamais teria. Quando eu resolvi fazer Ciência, minha ideia era abandonar a medicina para sempre mas, por causa dela, eu resgatei esse conhecimento. Estou fazendo estudos clínicos, vendo pessoas, ajudando em diagnósticos… O que aconteceu é que em termos profissionais, virei um médico do futuro. Um cara que usa evidências de uma forma mais eficaz, desenhando ensaios clínicos que potencialmente irão transformar-se em terapias.

Já em termos humanos, eu acho que a coisa mais fundamental que aconteceu comigo foi a quebra dessa tendência de ser uma pessoa extremamente racional. Eu sempre tive dificuldades com a empatia, era muito difícil me colocar nos pés de outras pessoas. Hoje, eu tendo a ser mais empático e emocional do que sempre fui. Eu deixo as emoções virem… Sou capaz de interagir com pais de pessoas com síndrome de Down e falar: “Companheiro, eu sei o que você está passando”. Isso porque eu realmente sei o que essa pessoa sente, vivi isso na pele. Então, a Tyche definitivamente mudou a minha vida.

Não quero usar o clichê de que ela me tornou uma pessoa melhor, mas ela me fez um melhor cidadão para a comunidade humana. De qualquer forma, não posso deixar de manifestar que sou metade dessa equação. Minha esposa sofreu muito e o nascimento da Tyche acabou restringindo sua liberdade. Nossa filha tem problemas médicos, compostos com a síndrome de Down. Ela tem uma alergia fatal a laticínio e ovos. Se pra mim os horizontes expandiram, para a Daisy, se fecharam… Por isso não queria ser relapso em dizer que foi tudo positivo. Vivo essa dicotomia na minha própria casa, pois afetou negativamente a qualidade de vida da minha esposa. E família é a soma da qualidade de vida de todos. Mas existe uma felicidade, uma unidade e afinidade entre todos nós. Afinal antes da Tyche nascer, eramos casados há 10 anos. Existe um companheirismo muito grande entre mim e minha esposa. E é isso que me permite trabalhar 12 horas por dia e ter ânimo para chegar em casa e ajudar no dever de casa da minha filha.

Nós temos uma ligação muito profunda e, como qualquer outro pai, não a trocaria por qualquer outra coisa. Mas dizer que tudo são rosas acho que seria um pouco desonesto. E, de novo, a única razão para sobreviver a essa avalanche foi nossa união. Lembre-se que, além do parto ser traumatizante, a gente vivia sozinho em um país estrangeiro e com poucos amigos. Acabamos sem ter o suporte familiar que outras pessoas costumam ter. Foi mais difícil, mas a gente aguentou, sobreviveu – literalmente. Nossa ligação é muito, muito forte. Ano que vem faremos 30 anos de casados e a gente continua com a mesma relação do primeiro dia de namoro. E é esse companheirismo e confiança absoluta que nos fortalece para continuar tentando o melhor.