Nas escolas de Novo Hamburgo, em todo pátio tem fruta no pé

17/10/2016 18:17 / Atualizado em 07/05/2020 10:29

Tudo começou quando eu ainda era criança: cresci brincando no chão, construindo cabaninhas de capim, subindo em árvores, soltando pandorgas e tudo mais que uma criança deveria ter direito. Minha relação criança e natureza começou na minha própria infância.

A citação é da bióloga Rita Jaqueline Morais, assessora pedagógica de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. A rede de ensino traz uma experiência inspiradora de como implantar na política pública uma metodologia que propicie que as crianças se desenvolvam integralmente em um espaço escolar que valorize e invista na conexão com a natureza. É um processo que já dura oito anos e colheu ótimos frutos, como por exemplo, um roteiro de composição dos pátios escolares que está presente em todos as 32 escolas da rede. “Foi uma concepção pedagógica construída e consolidada a partir dessa trajetória de estudos”, conta Rita.”O pátio da escola precisa ser rico de natureza e de possibilidades para o desenvolvimento integral da criança.

Brincar livremente e se sujar de areia e barro[/img]

O Catraquinha conversou com Rita para conhecer essa experiência e entender como é possível “desemparedar” as crianças, mesmo com poucos recursos financeiros. Ela esclarece que não há verba complementar ou específica para esse fim. “Usa-se muita criatividade e reaproveitamento de materiais. Opta-se por deixar de investir em materiais que tradicionalmente são usados dentro de sala para investir na qualificação do espaço externo, por compreender que esta opção ajuda e qualifica o processo pedagógico e as aprendizagens das crianças”, explica.

A primeira coisa feita foi pensar a formação continuada dos professores para “desemparedar as crianças” e garantir que o pátio escolar apresente possibilidades de exploração e aprendizado. “Temos encontros específicos sobre o tema ‘criança e natureza’ e também temas eleitos a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil – DCNEI com objetivo de aprofundar conceitos importantes. Temas como concepção de infância, de criança, currículo, rotinas, brincar e interações, educação ambiental e sustentabilidade, relação com a natureza, cultura escrita, e psicomotricidade relacional perpassam estes encontros formativos”, descreve a assessora.

Acompanhe a entrevista

Como os pais se envolvem com a proposta? E os educadores?

Rita Jaqueline: Eu diria que pais e professores são quem de fato materializam a proposta. Os professores é que atuam diretamente com as crianças, são eles que as levam para os pátios e criam as condições para o desemparedamento. São os professores que pensam os espaços, participam de sua construção, convencem os pais da importância da proposta. São os professores que abrem mão da “comodidade” da sala de referência e levam as crianças para a rua dando liberdade para a brincadeira, mesmo sabendo que as crianças vão se sujar muito mais; são eles que se desacomodam de suas cadeiras, permanecendo próximos e atentos, por exemplo, ao permitir que as crianças se desafiem subindo em árvores, escalando barrancos, brincando em desníveis. São os professores que optam em investir na horta ou no jardim e não em desenho fotocopiado. São os professores de deixam que investir em  E.V.A para investir  em areia ou toquinhos de madeira. Os pais, além da confiança depositada nos professores, com essa proposta diferenciada, na maioria das escolas participam da construção dos espaços seja colocando a “mão na massa” ou ajudando a captar recursos financeiros. Alguns pais, inclusive, se responsabilizam por molhar a horta, jardim e alimentar os animais durante finais de semana ou períodos de recesso escolar e férias.

Quais resultados você pode citar envolvendo as instituições, crianças e famílias?

Rita Jaqueline: Acredito que o grande ganho foi a aproximação das crianças com a natureza dentro e fora da escola.  Os pátios estão, cada vez mais, ganhando o jeito de “quintal de vovó”, com elementos que lembram uma casa, trazendo aconchego para as crianças e famílias. Um pátio rico também oferece  possibilidades que a maioria das crianças já não tem mais nas cidades urbanas como comer fruta do pé, participar do cuidado com a horta, sentir perfumes de flores e ervas aromáticas, brincar livremente e se sujar de areia e barro.  Ao optar por materiais naturais e reais (panelas de verdade, colheres de pau, toquinhos de madeira, areia, grama…) tivemos uma redução do consumo de brinquedos de plástico, que além de uma atitude orientada para a sustentabilidade, ajudam as crianças a conhecer a materialidade original e acionam a imitação do mundo real, através da brincadeira, com mais inteireza e profundidade. Materiais não estruturados como madeiras (toquinhos, tábuas, tocos maiores), tecidos, porongos, cascas, sementes favorecem o potencial criativo das crianças. Brinquedos de madeira, por exemplo, apresentam peso, textura e aroma diferenciados, se comparados aos brinquedos de plástico.

Como escolas com espaços pequenos podem trazer as crianças para sentir a natureza?

Rita Jaqueline: A questão não está no tamanho do espaço e sim na riqueza que ele vai oferecer, em como organizá-lo.  Entre as escolas de nossa rede, justamente, uma das escolas com menor tamanho de pátio, é uma das que tem maior diversidade de possibilidades para as crianças, com variedade de árvores frutíferas, horta, composteira, cisterna e diferentes recantos para a brincadeira. Materializar uma proposta de pátio está muito mais para a concepção do que para o tamanho do pátio ou para os recursos financeiros.

Outra possibilidade é a transposição dos muros da escola, para além do espaço escolar também devemos oportunizar às crianças habitarem espaços da cidade como quintais, praças e parques. Temos escolas que fizeram parcerias com espaços próximos como a igreja, temos escolas que abriram um portão entre a escola e a praça para que a praça pudesse ser habitada com maior frequência e facilidade, temos escolas dentro de parques que antes não usavam estes espaços e agora utilizam.

Como Novo Hamburgo pode influenciar e inspirar outras redes de ensino pelo Brasil?

Rita Jaqueline: Cada município tem uma realidade e precisa construir o seu jeito de fazer. Aqui na Rede Municipal de Ensino de Novo Hamburgo, colocamos a criança no centro do planejamento e partimos de uma escuta atenta às suas necessidades e interesses. Assim, o brincar, as interações e a relação com a natureza são fundamentais. Experiências como piqueniques, subir em árvores, cultivar a horta só vão fazer parte da vida da criança se acontecerem na escola. Experiências que ajudam a criança a se misturar ao mundo construindo sua identidade individual e coletiva, além de  uma relação afetiva com a natureza.

É mais fácil do que parece!

Confira a proposta de composição do pátio para as escolas de Educação infantil de Novo Hamburgo e inspire-se

Sombra, futíferas, perenes ou caducifólias (perdem as folhas na estação fria), trepadeiras em cercas ou muros, possibilidade de interação.

Pássaros

Quais árvores frequentam? Há tratadores? Há espaço para água com banho?

Jardim

Flores com perfume, flores coloridas, ervas aromáticas, plantas sensitivas. texturas, sons.

Horta

No chão, suspensa, composteira.

Espaços

Brincar barulhento e ativar, brincar calmo e pensativo (cantinho secreto), declives são aproveitados?, caixa de areia, grama, chão batido, túneis, pérgola, trilhas e caminhos.

Brinquedos e equipamentos

Brinquedos de larga escala (tecidos, madeirinhas, cordas, caixas…), pracinha, casinha, brinquedos de areia. material de jardinagem, tocos de árvores, bancos, objetos móveis (as crianças podem interferir na paisagem?).

Desafios

Falsa baiana, rampas, escadas, escalada.

[Presença de animais]

Aves, peixes, tartarugas, outros.

Água

Cisterna, torneira externa acessível às crianças.

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