Pesquisa investiga marcas do racismo em famílias ‘inter-raciais’
Uma pesquisa realizada pela psicóloga social Lia Vainer Schucman mostrou que, mesmo cento e vinte e nove anos depois da abolição da escravidão, o preconceito de raça continua bastante disseminado na sociedade brasileira – tão disseminado que se manifesta até mesmo no interior de “famílias inter-raciais”.
O estudo foi tema de seu pós-doutorado realizado na Universidade de São Paulo (USP) com apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
“Nosso objetivo foi verificar se e como as hierarquias raciais da sociedade se reproduzem no interior de famílias cujos integrantes se autoclassificam diferentemente em relação à ‘raça’: como ‘brancos’, ‘negros’ ou ‘mestiços’. E como essas hierarquias coexistem e interagem com os afetos”, disse a psicóloga em entrevista ao repórter José Tadeu Arantes, da Agência FAPESP.
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O resultado da entrevistas feitas com 13 famílias de diferentes regiões do país foram reunidos no livro “Famílias Inter-raciais: tensões entre cor e amor”, com lançamento previsto para 2017.
Schucman partiu do pressuposto de que “raça” não é um dado biológico, mas uma construção social. Trata-se de uma construção, baseada no fenótipo, que engendra e mantém profundas desigualdades materiais e simbólicas na sociedade, e impacta o cotidiano de milhões de pessoas.
“Uma mesma família pode ser considerada ‘inter-racial’ para um de seus integrantes e não ser para outro. Além disso, uma família tida como ‘inter-racial’ no Rio Grande Sul pode ser classificada como ‘branca’ na Bahia.
Segundo a literatura especializada, as relações inter-raciais iniciaram-se no Brasil, no âmbito da vida privada, desde os primórdios da colonização – principalmente a partir do estupro e de outras formas de violência cometidas por “homens brancos” portugueses contra “mulheres negras” ou “indígenas”. O censo de 1960 apontou que, naquele ano, 8% dos casamentos eram “inter-raciais” no país. Em 2010, esse percentual saltou para 31%. Ou seja, quase um terço das uniões matrimoniais realizadas no Brasil acontece entre pessoas que se autoclassificam como sendo de “raças diferentes”. “O fenômeno é muito comum entre as classes mais pobres, porém raríssimo entre as classes ricas”, comentou Schucman.
“A história mais dura que recolhi foi a de uma jovem universitária que me procurou quando eu já havia dado por encerrada a fase de entrevistas. Ela era fenotipicamente ‘negra’, filha de mãe ‘branca’. E me contou que, quando pequena, sua mãe cantava assim: ‘Plantei uma cenoura no meu quintal / Nasceu uma negrinha de avental / Dança negrinha / Não sei dançar / Pega no chicote, ela dança já’. A canção de ninar da mãe não só era racista, mas também escravista’, disse Lia.
Na opinião da pesquisadora, essa “mãe branca”, empregada doméstica, de olhos azuis, nordestina de Recife, tinha casado várias vezes sempre com homens “negros”. E chamava os ex-maridos de “macacos”. O pai da jovem, pedreiro, nascido na Bahia, e classificado pela filha como “preto retinto”, foi o segundo deles.
Outras entrevistas mostraram à pesquisadora formas bem mais sutis de negação, levando-a a concluir que o racismo das pessoas não necessariamente impede o afeto. “Na maioria dos casos, o indivíduo ‘negro’ é amado por seus familiares. O que ocorre, isto sim, é que, por amá-lo ou para amá-lo, esses familiares muitas vezes negam sua condição de ‘negro’. Em vez de reelaborarem o seu racismo com o intuito de superá-lo, os familiares simplesmente retiram a pessoa amada do grupo estigmatizado. Utilizei o conceito de ‘negação’, de Freud, para interpretar esse comportamento”, explicou.
No caso de uma das famílias ouvida por Schucman, originária da Bahia, a mãe considerava que todos os seus familiares eram “brancos”. E que, portanto, a própria entrevista não fazia sentido. Mas um dos filhos se autoconsiderava “negro, com uma irmã branca”, vivendo, assim, em uma “família inter-racial”. Para a mãe, essa ideia do filho era “uma bobagem, que ele adotou depois de entrar na universidade”. Esse filho era o que recebia o maior afeto da mãe, mas, para que pudesse amá-lo, ela, de alguma forma, precisava negar que ele fosse “negro”. Daí o conceito de “negação”.
A conclusão da pesquisadora é a de que, no Brasil, é possível ser contra o racismo, achar que o racismo é um mal a ser combatido, casar com “negro”, e, mesmo assim, ser racista. Racista no sentido de hierarquizar as pessoas a partir do fenótipo, de achar o “cabelo do branco” mais bonito, o “nariz do branco” mais bonito, e assim por diante. “Mas, se a ‘família inter-racial’ é, muitas vezes, o lócus de vivências racistas, ela também pode ser um espaço privilegiado para o acolhimento e o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento do racismo da sociedade envolvente, como pude verificar em mais de uma entrevista”, disse.