A vida de mamães trans de primeira viagem
O dia também é delas: veja três relatos de mulheres trans que decidiram se tornar mães
Neste 9 de maio comemorasse um dia muito especial, o Dia da Mães. Nesta data, é celebrado a benevolência e força de mulheres que exercerem um dos papéis mais desafiadores da sociedade: o de ser mãe. O que seria do mundo se não existissem as mães?
Então, para mostrar novas configurações de família do século 21, este ano, a Catraca Livre conversou com duas mamães trans de primeira viagem e uma que ainda está no processo de se tornar uma. Em relatos, elas contam como se foi construído a vontade de ser mãe e como elas encaram a dura realidade do preconceito apenas pelo fato de serem pessoas transgêneros.
A mamãe empresária e presente
Fabiana Santos, 28 anos, nasceu em Mato Grosso do Sul, em São Gabriel do Oeste e foi criada em Francisco Beltrão, no Paraná. Atualmente, ela mora no Rio de Janeiro com o marido Cleyton e a sua primeira filha Alex.
A empresária disse que o desejo de ser mãe veio há quatro anos, mas foi junto com o marido que a vontade cresceu ainda mais. “Então, nesse ponto, sempre falo bem a verdade. Quando eu estava com o Cleyton, era o sonho dele ser pai, ter um filho. No meu caso, tive vontade. Então, com vinte e quatro anos veio a vontade de construir uma família. Vamos falar assim, né? O filho, a gente chama de meu. Mesmo sabendo que ele vai voar um dia”, fala.
Fabiana conta que a rotina antes da chegada da filha era apenas sobre trabalho, mas que agora precisa conciliar com os cuidados da filha. “Minha rotina era muito focada em trabalho, né? A gente saía algumas vezes, preferíamos coisas mais casuais, porém era muito focada no trabalho. No querer construir algo”, afirma. “No meio transexual, é muito difícil a gente conquistar algo na vida. Então, eu queria muito conquistar algo, ter algo pra não ir, infelizmente, pro lado que todas vão, pro lado da prostituição”, indaga ela.
Por ser uma mulher de negócios e ter que resolver alguns trâmites fora de casa, foi preciso contratar uma pessoa para ajudar o marido enquanto ela estivesse trabalhando. “Eu saio cedo, vou pro salão, abro o salão, trabalho o dia todo, a noite eu chego em casa e, de verdade. O que mudou é chegar em casa, encontrar a pessoinha, isso pra mim se tornou a coisa mais fofa do mundo”, conta emocionada.
O casal se conheceu em julho de 2019 através do Instagram, em uma publicação feita por Cleyton. No dia 6 de agosto eles já estavam morando juntos. O papo de filhos veio logo sequência. “A gente foi amadurecendo a ideia, fomos ao médico, fizemos exames pra ver se estava tudo bem pra assim a gente poder começar. Paramos a harmonização durante seis meses e foi quando o Cleiton engravidou”, revela.
Sobre ser uma mãe transexual, ela enfatiza que não se enxerga como diferente de uma mãe cisgênero (que se identifica com o corpo e gênero de nascença). “Eu sou uma mãe como qualquer outra, eu trabalho, eu luto pelos direitos. Então, eu não vejo muita diferença entre uma mãe cis e uma mãe trans. Algumas vão encontrar dificuldades, outras vão achar olhares constrangedores na rua. Mas, eu levo tudo muito saudável. Até porque a gente não precisa só ter apenas exemplos ruins, certo?”.
Fabiana e Cleyton também possuem seguidores nas redes sociais e utilizam da plataforma para informá-los sobre como é a vida de uma casal trans que acabou de ter um bebê. Mas, por conta desta exposição, pessoas maldosas os atacam por simplesmente serem transexuais, recebendo inclusive ameaças de morte. “Recebemos ameaça, claro, de lugares bem próximos de onde a gente mora, mas bloqueamos, não levamos em consideração, deixamos pra lá. Graças a Deus, nada aconteceu com a gente. Se Deus quiser, nada vai acontecer”, exclama.
Alex é a primeira filha do casal e se depender de Fabiana será a “última”. Mas, a mamãe não ficou para trás quando o quesito é por em prática o cuidar de um ser humano. Ela disse que aprendeu a criar uma pessoa quando teve que cuidar da própria irmã dezenove anos atrás.
“Eu cuidei de uma criança há dezenove. Esta criança era minha irmã. Pra mim, foi tão natural a troca de fralda, o cuidado, o zelo, dar banho. Eu já limpei casa com ela colo, de lá e pra cá, organizando tudo, até ela dormir. Eu que dei o primeiro banho dela. Parece que eu cuidei ontem de uma criança e hoje eu estou cuidando da minha. Eu nunca estudei sobre maternidade, nunca vi como é que limpava o umbigo de uma criança. Mas, o umbiguinho da minha saiu bonitinho”, conta com muito orgulho.
A empresária ainda fez questão de ressaltar um recurso a qual mulheres trans podem passar para ajudar o marido na hora da amamentação. No caso deste casal, ele não chegou a fazer mastectomia (retirada total da mama) e quem ordenha o leite é ele. Mas, caso fosse preciso, ela diz que poderia fazer um procedimento hormonal para começar a lactar. “O Cleyton não fez a mastectomia ainda, então ele ordenha com um aparelho eletrônico. E aí, eu amamento na mamadeirinha. Nós optamos ser assim, até porque eu poderia, sim, amamentar. Hoje a ciência evoluiu de certa forma que eu poderia fazer um tratamento hormonal durante o processo de gravidez dele”, explica.
A mamãe que influencia o amor
Ellen Carine, 25, é influenciadora digital e possui um canal no YouTube. Além disso, ela também é coordenadora municipal da associação pró-LGBT Aliança, em Montes Claros, local onde mora com o marido Rodrigo e sua primeira filha Izabella Victória.
A vontade de ser mãe começou a ser construída quando ela ainda nem era uma mulher transexual. Sem irmãos e com o desejo de ter mais pessoas na família, Ellen planejava que um dia ia ter filhos. “Desde os meus 17 anos penso sobre ter filhos. Por mais que eu quisesse, não tive irmãos. Acabou que virou uma necessidade em ter um filho. Mas, era uma vontade, não via possibilidade. Eu estava me descobrindo. Então, eu pensava assim: ‘eu nem sei o que eu sou, como que eu quero ser mãe?’”, revela.
Ela fala que a rotina do casal mudou completamente após a chegada da filha. Se antes eles conseguiam até tomar café juntos para iniciar as tarefas diárias, agora é necessário fazer revezamento de quem cuida da criança. “Agora não tem rotina, é simples assim. Antes eu acordava todos os dias tomando café junto com meu esposo, depois do café, a gente parava para conversar sobre como que ia ser durante o dia”, exemplifica. “Hoje a gente não consegue nem tomar café junto, pra ser bem sincera. Senta para o café, o bebê chora. Agora a rotina é o seguinte: a gente chama de plantão, é o meu plantão ou plantão dele”, complementa.
Ellen conta que não consegue enxergar diferença de uma mãe transexual para uma mãe cisgênero (que se identifica com o corpo e gênero de nascença). “Eu creio que não mudou em nada, mesmo não sendo eu que estava gerando minha filha, eu creio que isso não interferiu em nada. Eu acompanhei do início ao fim todos os pré-natais, todos os exames. Então, assim, a preocupação, eu creio que foi até um pouquinho mais do que muitos pais [cisgêneros] que eu vejo por aí”, enfatiza.
Ela ainda diz que muitas pessoas tem dúvida sobre como será a criação da filha simplesmente por serem um casal transgênero. “O pessoal se preocupa muito como vai ser a cabeça da criança, como é que a gente vai explicar para criança. Eles têm um raciocínio de que somos um casal hétero. Sim, a gente é um casal de hétero. E mesmo se não fosse, eles não tem nada a ver com isso”, exclama.
Ellen, juntamente com o marido, faz a administração do perfil “Gestação Trans” no Instagram, que até agora acumula mais de 130 mil seguidores. Através do canal, ela pretende continuar disseminando informação sobre a rotina deles como casal e também da bebê. “Para o futuro, a gente espera muitas coisas positivas. Até mesmo porque agora não é mais um perfil sobre gestação, agora é uma família trans, querendo ou não. É o que a gente quer levar pra sociedade. Para mostrar que não muda nada, não interfere em nada”, conta.
A influenciadora digital ainda mandou um recado para as futuras mamães trans. “Nunca deixe seu sonho se apagar por medo das críticas da sociedade. Corre atrás, vale a pena! Jamais oculte seus sonhos por causa do medo que a ansiedade tenta impor. As críticas e os ‘haters’ sempre vão existir. Mas, ao ver nossas postagens, passam a entender que o preconceito só existe por conta da falta de informação. Que tem muito amor no coração, o preconceito não tem vez”, finaliza.
A futura mamãe
Larissa Mattos, 27 anos, mora em Pirassununga, interior de São Paulo e exerce a função de cabeleireira. Namorou durante um tempo Lírio Almeida, que neste momento está grávido de três meses.
Para ela a construção da ideia de ser mãe parecia algo inalcançável. “Eu sempre quis ser mãe, mas na minha cabeça era impossível. Eu nunca descartei a possibilidade, procurei conhecer mais sobre o assunto e acabou que aconteceu”, fala. “Esse desejo [de ser mãe] veio aflorar depois da transição [de gênero], mas eu sou muito apegada a criança, sempre gostei muito”, completa.
Larissa conta que ela conheceu o ex-namorado também através do Instagram, em maio de 2020. O empecilho do encontro pessoal, além da pandemia, era de 3898 Km, já que Lírio é de Macapá, no Amapá e ela de Pirassununga, em São Paulo. “Ele veio pra cá, pra minha cidade em dezembro [de 2020]. Passou vinte dias com amigos dele. Aconteceu da gente se conhecer melhor aqui pessoalmente e começamos a namorar. Ele acabou ficando três meses morando aqui comigo. Faz um mês que ele voltou [para o Macapá]”, conta.
Mesmo que o casal tenha se separado por agora, ela diz que sempre está em contato com ele para saber como está o processo de gravidez. “Eu tenho muito contato com ele ainda, ele me fala tudo que tá acontecendo no médico, como está sendo os processos. Ele que está sentindo toda mudança no corpo e tudo mais. Mesmo assim, ele vai me deixando informada sobre tudo”, revela.
Apesar da notícia da gravidez ter sido bem recebida pelo ex-casal, quando ficaram sabendo, já não era algo esperado mais, já que tinham tentado muitas vezes anteriormente. “A gente estava focado em fazer uma vaquinha pra ele fazer a mastectomia dele. Estava tudo certo e aconteceu a gravidez”, diz risonha.
Ambos tiveram que parar com a terapia hormonal, mesmo depois de dois anos transicionando. “O Lírio veio para cá e ficou todo esse tempo sem hormônio. Já eu, estava dois meses sem. Caso a gente não tivesse parado de tomar [hormônios], não seria possível ter filho”, explica.
Ela tem consciência de o ex-namorado é quem está passando por mais dificuldades em decorrência das mudanças no corpo. “É mais difícil pra ele, porque está carregando o filho, ele tá vendo as mudanças no seu corpo e sofrendo ainda mais preconceito. No caso dos atendimentos médicos, ele nem sempre vai encontrar profissionais que estão adequados ao assunto. É muito difícil!”, reclama.
Este será a primeira experiência de Larissa como mãe e a inspiração para criação do filho ou filha, será de mulheres a qual ela se espelha. “Minha mãe, a mãe do Lídio, são mulheres muito guerreiras, que eu me inspiro, como mulher e como mãe. Se eu for um pouquinho do que elas foram, o que a minha mãe foi pra mim, está ótimo”, fala ela animada.
A profissional de cabelos conta que tinha outros planos a vista, mas ao ter conhecimento da gravidez, a atenção já está voltada para a criança. “Quero dar um futuro melhor, porque hoje em dia ainda está muito difícil. Eu quero criar uma criança pra mudar toda essa realidade. Um futuro melhor! Estou muito feliz por ter acontecido isso na minha vida. Tenho ficado ansiosa porque eu queria ficar de perto. É difícil pra mim também”, desabafa.