Apoio psicológico resgata autoestima de vítimas de violência doméstica

Tratamentos ajudam a amenizar sofrimento mental de quem passou pelo problema

As marcas de violência doméstica nem sempre são visíveis, mas geralmente são profundas e difíceis de serem superadas sem apoio. Por isso, segundo psicólogos, é fundamental que a vítima de violência seja acolhida por profissionais e terapeutas e tenha um atendimento adequado, capaz de fortalecê-la e auxiliá-la no enfrentamento de uma série de danos emocionais e psicológicos decorrentes de ciclos de violência que aniquilam sua autoestima.

Para a psicóloga Yeda Portela, diretora da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana, é essencial que a vítima de violência doméstica tenha auxílio psicológico para estabelecer vínculos positivos por meio da interação terapêutica, amenizar seu sofrimento mental e identificar possíveis sintomas ou doenças psiquiátricas comuns no contexto vivido, como a depressão, a automutilação e o isolamento.

Yeda, que também é coordenadora da Sala de Acolhimento Psicológico para Mulheres em situação de Violência Doméstica (SAP – Mulher) –  projeto da polícia técnico-científica de Araruama (RJ) para auxiliar mulheres que chegam ao serviço médico legal para fazer o exame de corpo de delito após registro de alguma ocorrência –, observa que o primeiro atendimento psicológico, denominado “acolhimento”, é importante também para que as vítimas não desistam de levar a denúncia adiante. “Essa escuta compreensiva é fundamental para que elas percebam que é possível ter um tratamento mais humanizado do poder público. Elas se sentem apoiadas e não desistem de dar sequência ao processo policial”, enfatiza.

A psicóloga Regina Fernandes Bacelar ressalta que o ciclo da violência doméstica se desenvolve por meio de uma série de atitudes do agressor que enfraquecem a vítima. Ataques pessoais e às relações que ela mantém são os mais comuns. Para que a vítima tenha condições de quebrar esse ciclo e sair, ela precisa fortalecer sua autoestima e sua capacidade de tomar decisões.

O trabalho oferecido pela ONG Nova Mulher, localizada na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da capital paulista, visa exatamente esse apoio. Além do atendimento psicológico individual, muitas mulheres encontram nas atividades oferecidas pela instituição algo que é fundamental para esse fortalecimento: o contato com outras mulheres que passaram por experiências semelhantes. A entidade promove uma série de oficinas e atividades de bem-estar, nas quais as vítimas interagem e encontram uma verdadeira rede de apoio. “É muito importante que a mulher volte a acreditar na capacidade dela de construir relações, seja de amizade, sejam outras relações afetivas, que ela tenha outras opções, que saia do isolamento”, explica Regina, que atua como voluntária na ONG.

Quando a mulher está inserida numa situação de violência, muitas vezes acredita que a situação que ela vive, embora violenta, é a sua única opção, esclarece Regina. “Esse enfraquecimento que vem com os ataques, com as ofensas, faz com que a vítima acredite que não vai conseguir ter um outro relacionamento, ter independência financeira, ter amigos. Há uma série de vulnerabilidades que ela vive dentro dessa relação, situações traumáticas, que fazem com que ela fique cada vez mais presa àquela dinâmica.”

O apoio psicológico é essencial não só para fortalecer mulheres que encerraram um ciclo de violência, mas também para encorajar aquelas que, por inúmeras e diferentes razões, não conseguem sair sozinhas de relacionamentos violentos. Essas mulheres, além de todo o sofrimento imposto, acabam ainda sendo socialmente culpabilizadas. “Há uma ideia absurda de que a mulher fica no relacionamento porque ela gosta de apanhar. A mulher não fica por gostar ou por ser conivente com a própria violência, mas justamente porque o resultado dessa violência a deixa cada vez mais vulnerável e incapaz de deixar aquilo”, pondera Regina. Além disso, a psicóloga lembra que é muito comum que a violência venha acompanhada de promessas de mudanças de comportamento por parte do agressor que, embora raramente se concretizem, acabam mantendo a mulher presa naquela dinâmica.

Escrita e terapia ajudam vítima a sair de relação abusiva

Susete Pasa, autora do livro “Abusada”
Créditos: Arquivo pessoal
Susete Pasa, autora do livro “Abusada”

Quem viveu essa situação de perto e conseguiu renascer, como ela mesma define, foi a escritora Susete Pasa, 47, de Porto Alegre (RS). Susete, que ficou casada por 24 anos, conta que durante todo o seu relacionamento sofreu abusos psicológicos intensos. Tentou se separar várias vezes, mas o ex-marido não concordava com o fim da relação. Em 2014, ela fugiu de casa e iniciou um processo que mudou completamente a sua vida. “Ele me obrigava a ouvi-lo por horas, me xingando e me rebaixando. Eu sabia que ele me tratava mal, mas não entendia que ele era um abusador.”

Em 2015, o ex-marido a convenceu a retomar o casamento por meio de promessas de que tudo mudaria. As agressões psicológicas voltaram, Susete entrou em depressão e foi buscar atendimento psiquiátrico. Tomou antidepressivos e fez terapia. Ela diz que o apoio psicológico foi crucial para sair do ciclo de violência. “Na terapia, muito lentamente, a psicóloga foi me ajudando a perceber que meu relacionamento não era saudável.”

Na tentativa de entender o próprio drama, Susete começou a pesquisar sobre o assunto e encontrou no site Mas Ele Nunca Me Bateu, que reúne relatos de mulheres vítimas de violência psicológica, muitas das respostas de que precisava. “Eu entendi o quanto eu era vítima – de abuso psicológico, patrimonial, sexual.”

Mesmo sofrendo uma série de violências e sendo impedida de entrar na própria casa, Susete não queria denunciar o ex-marido. “Eu relutava em fazer a denúncia de [Lei] Maria da Penha e pedir a medida protetiva porque não queria manchar a reputação da pessoa que estava me prejudicando totalmente.” Ela conta que o apoio psicológico foi importante também para desconstruir a proteção ao agressor. “Eu entendi que não tinha como ajudá-lo, que ele precisava de ajuda profissional.”

No fim do ano passado, segundo ela “num surto de vontade de se libertar”, Susete escreveu em apenas dois meses o livro “Abusada”, em que narra tudo o que viveu. “O abalo psicológico é uma marca profunda. No livro, eu digo que preferia que ele tivesse me batido para que alguém pudesse me socorrer.”

O apoio da família e a escrita foram essenciais para que a escritora iniciasse uma nova história. Embora afirme que suas feridas estejam marcadas na alma, Susete enxerga o próprio processo como uma vitória. “Estou muito feliz hoje, tenho muito orgulho dessa reviravolta na minha vida e me sinto uma vitoriosa.”


Campanha #ElaNãoPediu

Nenhuma mulher “pede” para apanhar. A culpa nunca é da vítima. A campanha #ElaNãoPediu, da Catraca Livre, tem como objetivo fortalecer o enfrentamento da violência doméstica no Brasil, por meio de conteúdos e também ao facilitar o acesso à rede de apoio existente, potencializando iniciativas reconhecidas. Conheça a nossa plataforma exclusiva.