Por que é importante entender a apropriação cultural

Elementos culturais, uma vez removidos de seus contextos, podem assumir significados muito divergentes

Vem-se falando muito sobre apropriação cultural nos últimos anos. Textos, textões, vídeos, threads no Twitter… o que não faltam são argumentos e opiniões e discussões sobre o tema.

Infelizmente, muito desses debates não vão para frente pois não se discute a questão com seriedade, sem intransigências e desonestidade.

A Youtube Nátaly Neri já abordou o tema apropriação cultural em um vídeo super didático
Créditos: reprodução
A Youtube Nátaly Neri já abordou o tema apropriação cultural em um vídeo super didático

De um lado há quem diga que apropriação cultural não existe, enquanto outras pessoas culpabilizam indivíduos, esquecendo que o sistema, esse sim, é o grande vilão.

Mas o que é apropriação cultural?

Apropriação cultural é quando você adota alguns elementos específicos de uma cultura distinta à sua. Por exemplo, formas de vestir ou adorno pessoal (turbantes, tranças), música e arte, religião, língua ou comportamento social (gírias).

Esses elementos, uma vez removidos de seus contextos culturais, podem assumir significados muito divergentes, ou apenas menos sutis do que aqueles originalmente realizados. Ou seja, uma pessoa branca de dreads pode ser vista como descolada, mas uma pessoa negra com o mesmo penteado é encarada como “suja”.

Apropriação cultural de elementos simbólicos da cultura negra são os mais problemáticos quando observamos o tema.

Isso se dá porque questões relacionadas a racismo são de difícil abordagem em um país como o Brasil, que nega ser racista apesar de ter sido erguido sobre o genocídio, escravização e violenta subordinação de povos negros africanos durante 358 anos – e a manutenção desse grupo em locais marginalizados da sociedade até hoje.

E dentro deste crime perfeito – já que no país “há racismo, mas sem racistas”, como disse o antropólogo Kabengele Munanga para a revista Fórum – como esperar que um tema como a apropriação cultural não gere embates nas redes sociais e exponha, de quebra, a ignorância de boa parte dos brasileiros, especialmente os brancos?

Se é “difícil” para pessoas brancas reconhecerem que são racistas sim, imagina identificarem e se posicionarem sobre casos de apropriação cultural?

Como o da atriz Isabella Santoni, noticiado pelo Catraca Livre. Branca, loira e de olhos azuis, ela publicou no Instagram fotos em que aparece de tranças, um elemento da cultura negra.

“Muito fácil ter “estilo afro” sendo branca e nunca ter que passar por todos os preconceitos sociais que pessoas negras passam por assumir o mesmo estilo”, escreveu uma internauta em uma publicação do site.

O comentário mostra, de forma sucinta, um dos vários problemas que há no uso de tranças, dreadlocks, turbantes e outros elementos que não tem origem em culturas compostas majoritariamente por brancos, mas que algumas pessoas brancas querem usar mesmo assim.

Além deste, veja abaixo outros casos em que a apropriação cultural aconteceu:

Anitta

Outra famosa que também não se deu conta da apropriação cultural foi Anitta. Em dezembro de 2016, ela apareceu de dreadlocks. Não contente, em fevereiro do ano seguinte colocou tranças. “A minha cor, não é moda”, disse uma seguidora, indicando outro problema: é legal brincar de ser negro, desde que você não seja um de verdade.

Daniela Mercury

A cantora baiana usou peruca black power no carnaval de Salvador em 2017. Se dizendo “preta de pele branca”, ela afirmou que o uso foi uma ideia de homenagem a Elza Soares.

“Se Margareth Menezes fosse branca, não existiria Daniela Mercury”, já disse o maestro Letieres Leite ao site bahia.ba, mostrando que a pele branca da “preta” Daniela Mercury a beneficiou em seu sucesso e a coloca em condições de “brincar” de ser negra em cima de um trio elétrico.

Bloco de Daniela Mercury durante o Carnaval de Salvador
Bloco de Daniela Mercury durante o Carnaval de Salvador

Demi Lovato

Em um clipe de maio de 2017, ela usa dreadlocks. Ao responder as acusações de apropriação, a cantora se limitou a dizer: “São torções no cabelo, não dreads #relaxem”. “E eles ficaram radiantes, de qualquer forma”, finalizou, um belo exemplo que, “de qualquer forma”, muitos brancos não se importam se estão esvaziando o significado de elementos negros.

Turbante e câncer. Apropriação cultural? 

O uso de um turbante acendeu debates nas redes sociais porque, apesar de branca, a pessoa que o usava tinha câncer e a peça escondia a sua cabeça careca. Inclusive inventaram a curiosa hashtag #VaiTerBrancaDeTurbanteSim, uma contradição diante do fato de que foram (e ainda são) as mulheres negras que precisam lutar para usar turbante, e não as brancas.

Ao abordar o assunto em um excelente texto no Medium, a jornalista Ana Carolina Moraes mostra como aqueles 358 anos de escravidão citados no começo deste texto seguem impactando a vida da população negra.

“A escravidão puniu e privou as pessoas negras de manifestarem a sua cultura neste solo. A capoeira foi criminalizada. As religiões de matrizes africanas, como o Candomblé, foram e são perseguidas. Mulheres negras tiveram o cabelo arrancado por usar tranças, foram proibidas de usar turbante e eram feridas pelas mulheres brancas por serem ‘bonitas’ e ‘atraírem’ a atenção (sexual) dos senhores de engenho”.

Ela ainda explica que o turbante é um símbolo de religiosidade e resistência, e uma pessoa branca que usa algo do tipo o tira de contexto, fazendo com que o turbante perca “seu caráter de resistência cultural” e se transforme “em mais um adereço fashion cuja apreciação está restrita à população branca”.

Disney

Empresas também incorrem na apropriação cultural. Foi o caso da Disney, que retirou em setembro de 2016 uma fantasia do filme Moana. A peça imitava um personagem do filme que faz referência a uma divindade dos polinésios, e seu uso como brincadeira foi considerado ofensivo.

“O time por trás de ‘Moana’ tomou muito cuidado para respeitar as culturas das Ilhas do Pacífico que inspiraram o filme, e nós lamentamos que a fantasia de Maui tenha ofendido alguns. Nós pedimos desculpas sinceras e retiramos a fantasia de nosso site e lojas”, afirmou a empresa.

A fantasia de Moana
A fantasia de Moana

Katy Perry

Única artista do grupo que reconheceu se apropriar de elementos de outras culturas, a cantora disse que “cometeu alguns erros” com penteados e vestimentas em clipes e apresentações.

A reflexão veio após ouvir as opiniões dos outros. “Por que não posso usar meu cabelo assim? Ou qual é a história por trás de deixar o cabelo dessa forma? Eu ouvi. Eu escutei. Eu não sabia. E eu nunca vou entender algumas coisas por causa de quem eu sou. Nunca vou entender, mas posso me educar [sobre elas]; e é isso que venho tentando fazer”.

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Katy Kardashian

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Pegando o exemplo de Katy Perry, que tal exercitar a empatia e ouvir outras opiniões, especialmente as de pessoas negras, a respeito da apropriação cultural?

Além deste texto da colunista Eliane Brum, uma pessoa branca, sobre o uso de turbante, e desta mini-aula da ativista negra Stephanie Ribeiro, indicamos assistir, com olhos, ouvidos e coração abertos, a este vídeo da cientista social e ativista negra Nátaly Neri.

Além de falar sobre individualidade (derrubando o uso do “meu corpo, minhas regras” quando falamos de apropriação cultural), ela ainda esmiúça conceitos sobre racismo e traz a sua própria experiência de vida.