O futuro dos rios de SP
“O problema dos rios urbanos não é um problema hidráulico, é um problema social"
Imagine que você precisa ir do extremo da zona sul até a ponta da zona leste. As opções de transporte são: carro, metrô, ônibus e barco. Qual você escolhe? Pode ser que daqui a alguns anos boa parte dos paulistanos escolha o barco. Pelo menos esse é o pensamento de um grupo de arquitetos e urbanistas que está planejando um sistema concreto (ou líquido, no caso) de transporte fluvial na cidade.
A mesopotâmia é aqui
A ideia de rios e córregos verdes, bonitos e úteis cortando a cidade parece utópica, mas não é. Em 2009, o Governo do Estado de São Paulo contratou um estudo para saber a viabilidade técnica para a implantação de um anel hidroviário, por meio do Departamento Hidroviário da Secretaria Estadual de Logística e Transportes. O responsável pela análise foi o Grupo Metrópole Fluvial, que pertence à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
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O grupo surgiu como parte de um laboratório de extensão curricular em que alunos do segundo ano de arquitetura passavam a estudar e planejar sistemas integrados urbanos para as cidades. O professor Alexandre Delijaicov, que coordena esses estudos, conta que os planos, na verdade, não dizem respeito apenas a um sistema de transportes, mas a um conjunto de redes que representaria toda a mudança de pensamento da cidade.
“Nossas primeiras sociedades nasceram nas margens dos rios”, explica. “Não fosse a criação dos canais e aquedutos, a revolução agrícola jamais teria acontecido e nós estaríamos até hoje caçando anta para comer. Não há motivo, portanto, que justifique por que cidades tão grandes e desenvolvidas como São Paulo viraram as costas para seus rios, que deveriam representar pontos de integração, mas hoje funcionam praticamente como muros, barreiras”, diz o professor.
Para ele, a infraestrutura urbana tem que representar a “conquista coletiva de um espaço”. Essa conquista deveria, por sua vez, criar uma sensação de bem estar social, e não individual. “Não importa que cada indivíduo esteja se sentindo bem por estar dentro do seu caro, em uma via expressa gigantesca. O importante é que todos nós nos sintamos bem como coletivo e como um grupo que compartilha um espaço. E por isso é fundamental que o espaço possa ser socialmente e ambientalmente aproveitado.”
A terceira margem do rio
O projeto do Hidroanel Metropolitano de São Paulo consiste em uma rede de vias navegáveis formada pelos rios Tietê e Pinheiros e as represas Billings e Taiaçupeba, além de um canal artificial que ligaria essas represas, totalizando 170km de hidrovias urbanas. O objetivo do grupo é que essa rede seja usada para transporte de pessoas e de cargas pela cidade.
“Haverá também a possibilidade do transporte público e até turístico”, salienta Delijaicov. “Mas o objetivo é que pelo hidroanel seja transportado o próprio material que é encontrado atualmente no fundo do rio, como lodo e sedimentos, além, claro, de cargas que atualmente ocupam muito espaço nas ruas, como entulho e lixo”, afirma.
Mas além de barcos percorrendo suas águas, os rios também ganhariam, de acordo com o projeto, margens diferentes. As bordas seriam “lúdicas e funcionais”, com parques, praças e bulevares que trouxessem a população para perto dos rios. Mais que isso, passariam a ser fundamentais para o pensamento de uma nova cidade.
O professor explica que o projeto do hidroanel já contempla, de forma inerente ao andamento do processo, a despoluição do rio e, consequentemente, seu melhor aproveitamento pela população. Seriam criados, por exemplo, “ecoportos” que funcionariam não só como praças, esquinas culturais e pontos de encontro, mas também como feiras de troca e venda de materiais orgânicos que seriam transportados pelos barcos.
Um dos aspectos mais interessantes do projeto diz respeito exatamente à qualidade de reaproveitamento de materiais que o rio teria. “Imagine uma montadora de automóveis ou de smartphones: várias fábricas menores criam produtos que vão alimentando indústrias maiores e chegam, por fim, ao produto final. O que nós estamos propondo é o caminho inverso. Que os rios sirvam para fazer funcionar a melhor rede de reciclagem e reutilização possível, com indústrias “desmontadoras” dispostas em ramificações de transportes que encaminhariam cada tipo de material até seu destino correto”, argumenta Delijaicov.
Veja, abaixo, o cronograma feito pelo projeto, que mostra a evolução do hidroanel “no plano ideal”, segundo o professor.
Hidráulica social
Após a fase de articulação arquitetônica e urbanística do projeto, que criou uma rede interdepartamental de atuação, o Hidroanel Metropolitano de São Paulo caminha para uma etapa importante de implantação. Mais uma vez, o Grupo Metrópole Fluvial será responsável para acompanhar as análises que serão feitas por cada secretaria que estaria, econômica, social ou ambientalmente envolvida no projeto.
O problema, explica o professor Alexandre Delijaicov, é que o plano de recuperação social dos rios de São Paulo esbarra em uma mudança comportamental da sociedade que, a seu ver, parece ainda distante. “O problema dos rios urbanos não é um problema hidráulico, é um problema social”, defende. “Nosso objetivo não é que a reincorporação dos rios da cidade seja utilizada para criação de condomínios e empreendimentos comerciais, mas sim para habitações populares” afirma.
Para o professor, mudanças infraestruturais da cidade não podem mais serem feitas com o pensamento do retorno financeiro imediato nem com o beneficiamento de alguém que não seja a população. “Nada pode ser pensado a curtíssimo e curto prazo. O que temos que colocar na cabeça é que ao tornar a cidade mais acessível, aproximando moradia, escola, hospital, lazer e emprego, a distribuição de oportunidades e o uso da cidade pelo cidadão aumentariam, o que acabaria tornando o crescimento cultural, social e financeiro da metrópole ainda maior, só que de forma saudável”, elucida.
O uso individual da cidade, na visão de Delijaicov, é uma das barreiras que precisam ser derrubadas se um dia planos como o do hidroanel quiserem ser levados a sério. “Não adianta nós ficarmos aqui tentando construir algo que pode ser usado por duas pessoas se o que dá dinheiro, e inclusive financia campanhas, é o empreendimento que é usado por um só indivíduo”, ele afirma.
Para ele, o ambiente público deve, de fato, ser público, “e não ocupado por pequenos pedaços de propriedades privadas – como são os carros”, diz com convicção, antes de concluir, “mas infelizmente as pessoas se acostumaram demais com simulacros de espaços públicos, como condomínios e clubes, e criaram um medo de olhar para as caras das outras. A mudança na infraestrutura física é a parte mais fácil de qualquer projeto urbanístico. O difícil é a mudança na infraestrutura mental.”
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