‘Boiadas’ de Salles e Bolsonaro já deixam marcas na floresta e nos povos
A Catraca Livre conversou com Luiza Lima, do Greenpeace Brasil, para entender os impactos das medidas de desmonte ambiental durante a pandemia
Desde o início do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a área ambiental tem sofrido uma verdadeira destruição. Destruição de políticas já existentes, de órgãos de proteção, de direitos dos povos originários e da floresta em si. Não à toa o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, assumiu publicamente, durante a reunião ministerial divulgada no dia 22 de abril, que o momento da pandemia do novo coronavírus seria a “oportunidade” para “ir passando a boiada”.
Fato é que a “boiada” a qual Salles se referiu começou a passar desde o início de 2019, quando Bolsonaro assumiu a Presidência. Foi a partir daí que ocorreu um aumento expressivo do desmatamento e da violência no campo. Mas, em tempos em que o mundo se voltou para a crise da covid-19, o ministro não hesitou em acelerar esse processo de desmonte ambiental.
Dados do sistema Deter-B, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostram que os alertas de desmatamento na floresta Amazônica cresceram 63,75% em abril de 2020, em comparação com o mesmo mês do ano passado.
Segundo Luiza Lima, porta-voz da campanha de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, entre março e abril deste ano, ocorreram várias “boiadas”.
“Salles conseguiu liberar a exportação de madeira sem autorização prévia do Ibama, o que favorece a prática ilegal; a exoneração de servidores do Ibama que estavam à frente de atividades de fiscalização; um despacho em que ele anistia desmatadores da Mata Atlântica, gerando uma forte insegurança jurídica em um bioma que não tem tanto conflito fundiário e ambiental”, explica.
O despacho citado acima pela representante da organização foi revogado nesta quinta-feira, 4, depois da pressão de ambientalistas, procuradores da República e da própria imprensa.
Um dos bois da boiada de Ricardo Salles precisou dar marcha a ré, graças à pressão do Ministério Público Federal, que mostrou que a canetada do anti-ministro para diminuir a proteção da Mata Atlântica era ilegal. #EssaBoiadaNãoVaiPassar https://t.co/TA38jiwul1
— Greenpeace Brasil (@GreenpeaceBR) June 4, 2020
Reação internacional
A declaração do ministro na reunião provocou ainda mais rechaço dos demais países para com a política brasileira, e este impacto também respinga na economia. “A fala do Salles piorou aquilo que já estava péssimo com relação à imagem ambiental do Brasil internacionalmente. E isso não é de hoje”, lembra Lima. Durante as queimadas do ano passado, o país tomou os noticiários do mundo todo. As demais nações pararam para olhar a gestão de Meio Ambiente, voltada para a destruição da floresta.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, sentiu essa “má fama” no início do ano. “Guedes foi ao Fórum Econômico Mundial de Davos e ficou assustado com o tamanho do estrago feito por Bolsonaro e Salles com relação à política ambiental e como isso estava gerando impactos bastante graves para as negociações e comercializações internacionais com o Brasil”, ressalta a porta-voz da organização.
“We need to make an effort while we are in this calm moment in terms of press coverage, because they are only talking about COVID".
Just imagine the things that have been said off camera…
Our common future is just a game to them.#SalvemAAmazônia https://t.co/NM2Ou49soZ— Greta Thunberg (@GretaThunberg) May 23, 2020
No exemplo mais recente, da reunião ministerial, as consequências para o Brasil têm sido vistas. Países que estavam à frente da discussão sobre o acordo da União Europeia com o Mercosul já deram um passo a mais pra trás. “Este é um acordo muito ruim para o clima global da forma como está colocado e também para a economia do Brasil”, reitera Lima.
“É basicamente a troca de bois por carros: ampliaria a comercialização de produtos industrializados e que geram grandes emissões, vindos da Europa, principalmente da Alemanha, em troca dos nossos produtos agropecuários, com baixíssima retenção de valor agregado aqui para o Brasil.” Por mais que o acordo não seja bom ao país, o governo Bolsonaro usou, no passado, o avanço dessas negociações como propaganda.
Na última semana, à época ainda com a ameaça da possível aprovação do PL da Grilagem, o PL 2633, houve o envio de duas cartas internacionais ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Uma delas assinada por mais de 40 empresas internacionais e outro documento vindo dos parlamentares europeus externalizando a preocupação com a política ambiental do Brasil e os resultados que a aprovação deste projeto causaria.
“Assim, vemos que os governos e mercados internacionais estão muito preocupados e isso pode gerar cada dia mais impactos para o Brasil, cuja economia não se encontra em uma situação boa, e agravar ainda mais nossas condições de desemprego”, diz a especialista.
Brasil: de protagonista à política do fingimento
Diante da repercussão negativa, o governo Bolsonaro, agora, adota a “política de fingimento”. A porta-voz da Políticas Públicas explica como isso se dá: “No começo do ano, eles criaram o Conselho da Amazônia, que nada mais é do que uma soma de ‘zeros’. Colocaram o vice-presidente Mourão à frente dessa política de combate ao desmatamento, deixando Salles um pouco no escanteio como uma forma de melhorar a imagem do país”.
No entanto, não há até o momento nenhum indício de que exista uma mudança de fato na política ambiental do governo. Muito pelo contrário. “O que vemos é que, em todas as oportunidades possíveis, seja pelo Executivo ou pelo Legislativo, eles tentam passar cada dia mais reformas, projetos ou aprovar medidas que vão ampliar o desmatamento e a violência no campo.”
Além disso, o Brasil se afasta ainda mais de uma discussão que está acontecendo em outros países sobre um novo modelo de desenvolvimento pós-pandemia. De acordo com o Greenpeace, no passado, o Brasil era tido como líder nas negociações internacionais de clima, sendo considerado exemplo de combate ao desmatamento e na redução de suas emissões.
“Agora, estamos cada dia mais no escanteio desses debates e da possibilidade de sair dessa crise buscando um modelo de sociedade que seja mais justo e menos desigual, e que também nos leve a um mundo com melhores condições climáticas e ambientais para a nossa sobrevivência”, enfatiza.
Impactos ambientais e reação da sociedade
Para Luiza Lima, as “boiadas” do governo Bolsonaro, tanto de Salles quanto do próprio presidente, já estão deixando suas marcas no chão da floresta e nos corpos dos povos originários. “Aumento do desmatamento e da violência no campo são exemplos disso. O MapBiomas lançou um relatório que mostra que 99% desse desmatamento de 2019 foi ilegal. Então, o processo de desmonte promovido por eles já deixa seus impactos na floresta”, afirma.
A partir de agora, a situação tende a se agravar, pois estamos às vésperas do início da temporada de seca na Amazônia, período em que as queimadas se intensificam. Ou seja, devido ao crescimento desenfreado do desmatamento durante a pandemia, o fogo deve aumentar. “É assim que funciona este ciclo: primeiro você desmata e depois coloca fogo naquela floresta já mais seca.”
“Imaginemos, por exemplo, o estado do Amazonas, que tem dimensão de país e dificílimo acesso das pessoas em áreas mais isoladas a Manaus, única cidade com leitos de UTI, já superlotados”, explica a porta-voz do Greenpeace. “Com o aumento da fumaça nessa região, vai haver um agravamento da condição de saúde das pessoas, além dos impactos gravíssimos na floresta e biodiversidade. Elas vão enfrentar um vírus que ataca justamente o sistema respiratório [o novo coronavírus] e ainda respirar a fumaça das queimadas da Amazônia”, completa.
Em meio a este cenário, a representante reitera que o Greenpeace, assim como várias outras organizações da sociedade civil, ambientalistas e de movimentos do campo, segue firme na denúncia dos atos comandados pelo governo.
Com a declaração da reunião ministerial, a organização se reuniu com outros grupos em uma coalizão para pedir o afastamento imediato de Ricardo Salles de seu cargo. Após a solicitação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, proferiu uma representação pedindo a investigação de crime de responsabilidade do ministro. A Justiça Federal também decidiu, a partir de um requerimento do Ministério Público, que Ibama, ICMBio e Funai cumpram com seus deveres de proteção da floresta e dos povos indígenas contra o coronavírus.
“Embora Salles acredite que ele pode passar sua boiada porque ninguém está enxergando, a sociedade vai seguir acompanhando e denunciando, a Justiça vai seguir julgando seus atos e os satélites vão continuar medindo o tamanho do estrago feito por sua política. Ele não pode não, ele não tem espaço. A boiada não vai passar”, finaliza ela.