Campeã nacional de poesia é mulher, negra e nascida na periferia
A paulistana Luz Ribeiro irá para a França em maio representar o Brasil no campeonato mundial de Slam, que faz batalha de poesias autorais
A poeta Luz Ribeiro, 29 anos, não faz parte das estatísticas que lhe foram esperadas. Mulher, negra e criada na periferia de São Paulo, ela abriu mão de sua formação como profissional de educação física para lutar e se firmar como escritora e atriz neste que é um dos países mais machistas e racistas do mundo.
Uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, revela que, entre os romances publicados por algumas das principais editoras brasileiras, os autores são, na maioria, brancos (93,9%) e homens (72,7%). Em paralelo a esse fato, um relatório da CPI mostra que, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil.
Diante do descaso generalizado com o que esses números representam, Luz decidiu usar a palavra como arma. Como resistência. E conseguiu: em maio, a poeta irá representar o Brasil na Copa do Mundo de Slam de Poesias, na França.
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No Slam, campeonato que faz batalha de poesias autorais e vem se espalhando pelo Brasil desde 2011, os participantes têm até três minutos para apresentar sua poesia. Um júri escolhido na hora dá notas de 0 a 10 para os competidores, e a maior pontuação vence.
Dos cadernos aos saraus
Luz começou a participar de saraus e batalhas de poesia em 2012. Porém, sua relação com a escrita e com a oralidade vem de muito antes. A poeta foi criada no Jardim Souza, no extremo sul da capital paulista. Em 1996, quando era criança, a região onde mora foi considerada a mais perigosa do mundo pela ONU.
Por “demasia de zelo” de sua mãe, a paulistana não podia sair para brincar na rua. Restava a ela ficar no quintal de casa. “Eu subia e descia degraus, inventava brincadeiras no corredor e andava de bicicleta na laje”, conta ao Catraca Livre. Sua irmã, 12 anos mais velha que ela, também foi uma grande referência para seus hábitos de então – desde as músicas que ouvia até ao programa que assistia na televisão.
Recordando as histórias de infância, Luz diz que se lembra de ver sua mãe compondo com a ajuda da filha mais velha. “Ela sempre teve muita dificuldade com a escrita, então pedia ajuda para minha irmã escrever ou ela mesma ligava o gravador para não perder a composição. Minha mãe faz isso até hoje.”
A irmã, que também escrevia, tinha um caderno em que repassava a limpo seus textos criados. “Para as pessoas lá em casa, era muito comum escrever. A diferença da minha família pra mim é que acabei fazendo da escrita minha profissão. Meu maior compromisso hoje é com a palavra.”
De fato, Luz cresceu reproduzindo as práticas da família. Desde que foi alfabetizada, aos 5 anos de idade, ela diz que colocava todas as suas maiores questões no papel, mas “sem entender que aquilo era poesia”. A artista sofria muito bullying na escola, então escrever foi uma forma encontrada para extravasar suas angústias. Mais tarde, percebeu que aquilo tinha se tornado um “método terapêutico” para lidar com problemas e conflitos.
Na adolescência, demonstrou interesse em cursar Letras ou Artes Cênicas, mas um colega a desmotivou e a mãe disse que a família era muito pobre para ela ser atriz. Entre as opções possíveis, acabou optando pelo curso de Educação Física.
Desanimada com a vida profissional que mantinha, ela foi trabalhar com adolescentes em conflito com a lei, local onde atuou como orientadora, técnica social e gerente durante seis anos. Por conta do interesse no novo emprego, acabou cursando Pedagogia. “Foram anos trabalhando com pessoas em alta vulnerabilidade. Conheci casas que eram do tamanho do meu quarto, e eu achava que meu quarto era pequeno. Nesses lugares, moravam famílias que às vezes chegavam a ter sete filhos.”
A experiência nesse emprego a inspirou a escrever sua poesia favorita, a “Menimelímetros”.
Do Brasil ao mundo
O primeiro contato de Luz Ribeiro com um sarau aconteceu em 2012, em São Paulo. Primeiro, ela foi ao Cooperifa, na zona sul da cidade, organizado pelo poeta Sérgio Vaz. Poucos meses depois, seduzida por lugares como esse, também passou a frequentar outros espaços culturais, como o Sarau Suburbano e o Slam da Guilhermina.
“Foi assim que identifiquei que eu fazia parte de alguma coisa.” Ela começou a perceber que sua escrita nunca tinha sido próxima da de autoras brasileiras como Clarice Lispector ou Cecília Meireles. “Quando fui num sarau, ouvi uma mulher falando sobre a problemática de não ter água em casa e notei que aquilo chegava muito próximo ao que acontecia comigo. Dessa maneira, foi muito mais fácil acreditar que a minha escrita fazia sentido. Foi na Cooperifa que me vi, pela primeira vez, como uma possível escritora.”
Foi também nesses locais que ela percebeu a importância do exercício da real escuta. “Se tem 60 inscritos numa batalha de poesia ou num sarau, você vai ouvir 59 vezes para falar somente uma. Acho muito bonito o quanto você tem que ouvir para pode falar.”
Depois de sua primeira experiência num sarau, Luz passou a rodar a cidade em busca de outros lugares que promoviam encontros de poesia. Foi assim que conheceu o Menor Slam do Mundo, com poesias de até dez segundos, e o ZAP (Zona Autônoma da Palavra), o primeiro de São Paulo. “Eu estava perdidamente apaixonada. Comecei a entender que as palavras têm um poder muito grande.”
Todos esses encontros resultaram na publicação de seu primeiro livro, “Eterno Contínuo”. “É nessa hora que entro na estatística ainda pequena de mulheres negras que conseguem publicar um livro. E isso é muito louco.” A obra está sendo reimpressa e estará disponível para venda a partir de abril, além de outros dois inéditos que também serão lançados em breve, “Estanca” e “Espanca”.
No final do ano passado, depois de anos se apresentando em pontos espalhados na cidade, Luz tornou-se campeã do Slam BR, torneio que reúne anualmente os melhores poetas de Slams do país. Foi a primeira vitória de uma mulher na história da competição.
Agora, já com a passagem comprada para a final na França, Luz irá levar consigo cinco poemas consagrados e um inédito, no qual aborda a questão da colonização brasileira.
“Escrevo do lugar onde estou. Sou mulher, negra, nascida em lugar pobre. Eu gostaria de falar mais sobre o mar, sobre a natureza, sobre as pessoas que nascem. Mas o que é mais urgente pra mim são as pessoas que estão morrendo. E esse sangue tem cor. Mais importante pra mim é falar sobre como as mulheres ainda são sujeitas à invisibilidade. A poesia é minha arma de revide. E esse é meu tempo. Não posso deixar que ele passe.”
- Neste Mês da Mulher, o Catraca Livre vai prestar homenagens diárias a personagens do gênero feminino que nos inspiram. Saiba mais sobre a campanha #MulheresInspiradoras e leia outros perfis aqui.