Carnaval negro: a valorização da negritude é tema das escolas de samba em 2022
Agremiações do Rio e São Paulo levarão o protagonismo negro para a avenida. Confira
Por Joyce Nascimento do Guia Negro
Após a suspensão dos desfiles das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro e de São Paulo, em 2021, por conta da pandemia da Covid-19, este ano as agremiações voltam fortes e com exaltações à negritude. No Rio, de 12 escolas, seis abordam personalidades negras, cultura afro-brasileira, trazendo o protagonismo para o povo preto. O mesmo acontece nas agremiações paulistanas, com sete escolas levantando a temática. Com a negritude em evidência na avenida, o público poderá conferir uma ode à história negra.
“Em sangue nobre de Mandela e de Zumbi, nas veias do povo preto do meu Tuiuti”, esse é um trecho do samba-enredo “Ka Ríba Tí Ÿe – Que Nossos Caminhos Se Abram”, deste ano, da Paraíso do Tuiuti, escola de samba que em 2018 se tornou aclamada pelo público ao levar um enredo cuja narrativa negra abordou o escravagismo no Brasil: “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” A agremiação está entre as que colaboraram para um movimento progressivo de retomada às pautas de exaltação à negritude e de exposição da estrutura racista, que, cada vez mais, vem ganhando espaço e projeção nos últimos anos, propondo reflexão à sociedade.
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Junto com a Paraíso do Tuiuti, as escolas do Rio de Janeiro que apresentarão um enredo negro este ano são:
- Mangueira: “Angenor, José e Laurindo” – homenageia os ícones mangueirenses Cartola, Jamelão e Mestre Delegado;
- Portela: “Igi Osè Baobá” – conta a história e a importância da árvore africana Baobá;
- Vila Isabel: “Canta, canta minha gente! A Vila é de Martinho!” – homenageia o sambista Martinho da Vila;
- Grande Rio: “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu” – aborda Exu enquanto divindade africana e entidade afro-brasileira das religiões de matriz africana;
- Salgueiro: “Resistência” – enredo que reúne pontos de resistência cultural preta;
- Beija-Flor: “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor” – enaltece a história preta e aborda o racismo.
Já em São Paulo temos as seguintes agremiações:
- Colorado do Brás: “Carolina – A cinderela negra de Canindé” – uma homenagem à escritora Carolina de Jesus;
- Acadêmicos do Tatuapé: “Preto Velho. Conta a saga do café num canto de fé” – o enredo fala sobre a falange dos Pretos Velhos, entidades da Umbanda e que traz muito sobre a história escravagista no país;
- Vai-Vai: “Sankofá” – explica sobre a importância de Sankofá, um ideograma adinkra representado por um pássaro sagrado e que traz ensinamentos de vida dos povos acã, da África Ocidental;
- Gaviões da Fiel: “Basta” – samba-enredo de protesto sobre o racismo;
- Mocidade Alegre: “Quelémentina cadê você?” – homenageia a sambista Clementina de Jesus;
- Águia de Ouro: “Afoxé de Oxalá – no cortejo de Babá, um canto de luz em tempo de trevas” – tema inspirado na canção “Cortejo de Babá / Afoxé pra Oxalá”, do escritor Luiz Antônio Simas, que retrata sobre a divindade Oxalá, das religiões de matriz africana;
- Barroca Zona Sul: “A evolução está na sua fé… Saravá Seu Zé!” – conta sobre a falange da Malandragem, presente nas religiões Umbanda e Catimbó.
Escola de samba: um território negro
As escolas de samba do Rio de Janeiro nasceram na periferia e dentro das comunidades do estado, com ligações profundas com as religiões de matriz africana. Algumas das primeiras agremiações, oficializadas na década de 30, tiveram como seus primeiros ritmistas os ogans dos terreiros de Candomblé. A inserção religiosa e cultural é vista, por exemplo, nos toques de base das baterias que, antigamente, eram fundamentados nos toques sagrados dos orixás patronos das escolas – ainda vemos isso, nos dias atuais, nas baterias da Portela (com a inserção do toque consagrado à Oxóssi), da Mocidade (também com a inserção do toque consagrado à Oxóssi), da Mangueira (com a inserção do toque consagrado à Iansã, presente na marcação dos tamborins), por exemplo. A ala das baianas era composta por ialorixás, pelas tias do samba – primordiais para a resistência da opressão sofrida pelo samba.
Claudia Alexandre, jornalista, doutora e mestre em Ciência da Religião pela PUC-SP, pesquisa Escolas de Samba de São Paulo e tradições de matrizes africanas no Brasil, explica que as escolas de samba são, portanto, um território negro de origem e de direito. Lugares que, apesar do ambiente festivo estão longe de serem espaços alienados. “Os desfiles nada mais são do que veículos para a crítica social, denúncias e de exaltação dos povos marginalizados da história do Brasil. O marco de organização carnavalesca que surgiu no Brasil como forma de resistência e crítica aos problemas raciais é o Grêmio Recreativo de Arte Negra e a Escola de Samba Quilombo, fundada pelo compositor Candeia, Wilson Moreira, Darcy do Jongo e Neizinho, mas que resistiu apenas na década de 70. Entre suas integrantes, a escola tinha a ativista Lélia Gonzalez. A Quilombo participou ativamente na fundação do Movimento Negro Unificado, ocorrido em São Paulo, em 1974, e também na capital paulista inspirou a fundação da escola de samba Barroca Zona Sul”.
Em São Paulo, as agremiações surgem também em regiões periféricas e no interior do estado. De acordo com Cláudia, devido a forma de inserção de negros e negras na sociedade paulistana, há uma diferenciação na maneira como as manifestações negras ocorreram dentro do processo de início das escolas de samba. “Enquanto que as escolas de samba do Rio se originam na zona urbana e central da cidade, em São Paulo a origem destas manifestações está nas áreas rurais do interior paulista, onde surgem os batuques, o samba de bumbo, os cantos das plantações e as rodas de terreiros. Na capital paulista os mais antigos falam muito das rezas e macumba nas casas das tias quituteiras, mas nenhuma participação ativa de pais ou mães de santo, como ocorreu no Rio de Janeiro, onde a ligação foi estrutural. Porém, vamos encontrar a devoção aos orixás em algumas comunidades como é o caso da Camisa Verde e Branco, com o orixá Ogum; a Mocidade Alegre, com Xangô e a mais simbólica que é a Vai-Vai, que tem como patronos os orixás Exu e Ogum, com altares, assentamentos é rituais públicos para eles, inclusive já assumindo que o toque da bateria tem como base o ijexá, em alusão à Oxum.”
Apropriação cultural e embranquecimento
As escolas de samba sofreram com diversas influências que passam por cenários políticos, de apropriação cultural e midiatização. No Rio, desde que os desfiles se tornaram um evento para o grande público, durante a era Vargas e a ditadura militar, as agremiações foram submetidas a determinadas padronizações, a começar pela obrigatoriedade de temas que exaltassem o nacionalismo nos enredos. O acompanhamento das mídias, como a introdução do extinto Jornal dos Sports e, posteriormente, com as grandes emissoras de televisão, também contribuiu para a descaracterização do ritmo tanto do andamento dos desfiles das escolas, quanto das cadências das baterias que precisaram alterar o compasso, acelerando-o para caber no tempo determinado pelo campeonato e pela cobertura televisiva.
Algumas escolas, como Beija-Flor e Salgueiro, por exemplo, apesar das influências externas, foram resistências que mantiveram em ações e enredos a exaltação da cultura afro-brasileira. No entanto, com o passar dos anos, a estrutura racista promoveu o afastamento de personalidades negras e das comunidades em diversas escolas. O resultado é visto na ocupação majoritariamente branca em postos que antes eram reservados a tais personalidades, como lideranças, diretores, compositores, musas e rainhas de bateria.
O processo de resgate e valorização da identidade negra nas escolas de samba que vem ganhando fôlego (novamente) nos últimos anos acontece a partir de uma mudança social promovida unicamente pela população negra e por militâncias que têm amplificado suas vozes a partir de denúncias sobre o racismo estrutural. Consequentemente, traz cada vez mais questionamentos sobre o embranquecimento dentro das agremiações. Temos como fato recente a viralização do vídeo de Mayara Lima, princesa da Paraíso do Tuiuti, que encantou a todos com sua desenvoltura a frente da bateria. Ela trilhou uma trajetória de, pelo menos, dez anos dentro da agremiação, passando pela ala de passistas, musa, até conquistar o posto atual. O talento de Mayara trouxe reflexões e logo as comparações se tornaram inevitáveis. Enquanto a princesa desempenha com maestria a sua função e é cria da escola, a rainha escolhida para a Tuiuti é uma mulher branca que para além de uma performance questionável, pagou para assumir o cargo.
Claudia Alexandre comenta exatamente sobre a questão da mulher negra que passou por um período de invisibilização e objetificação, sendo preterida de postos fundamentais, como o de rainha de bateria. “Como se não bastasse ser ocupado por celebridades, quase sempre mulheres brancas, recentemente passou-se a vender a vaga por altas cifras, deteriorando um lugar onde meninas e mulheres negras das comunidades dificilmente poderão almejar”.
No entanto, Claudia faz um contraponto, a jornalista afirma que apesar da apropriação e do esvaziamento das lideranças negras nas escolas de samba, elas são heranças da cultura afro-brasileira. “Os temas que nos atravessam estarão sempre inspirando enredos e se transformaram em narrativas positivas através dos desfiles. Não há nada de novo, estamos falando mais de nós e mais sensíveis aos nossos lugares. Os sambas sempre protestaram sobre todas as casas sociais, sátiras políticas nos trouxeram o outro lado da história do “Brasil que não está no retrato”, o que ocorre é que estamos nos percebendo mais ẹ compreendendo mais as mensagens por que os temas estão no debate público. Ainda bem!”
*Os desfiles das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro e de São Paulo acontecem nos dias 22 e 23 de abril.