Conceição, Elisa e Vera: linha de frente por Carolina M. de Jesus

Há 62 anos, outro 15 de julho, em 1955, uma escritora foi às alturas, viu tudo de cima. Dessa vez não só pelo seu tamanho e o corpo esguio. Naquele dia, Carolina Maria de Jesus escreveu a obra que trilhou seu reconhecimento, há alguns anos momentâneo, hoje infinito na literatura brasileira: “Quarto de Despejo”. Sem fim por que a história não acaba nesta obra, três novas Carolinas continuam por aqui para afirmar isso: a escritora Conceição Evaristo, a poeta, atriz e cantora Elisa Lucinda e a professora Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina.

No auditório do Centro de Pesquisa de Formação do Sesc, o Ciclo Carolina Maria de Jesus, que aconteceu de 10 a 14 de julho em São Paulo, reuniu vozes para pensar a literatura da escritora — que tantas vezes já foi subestimada —  e essas estavam entre elas.

O primeiro diário publicado de Carolina Maria de Jesus foi “Quatro de Despejo”. Nos primeiros três dias de lançamento a escritora vendeu 10 mil exemplares.

Se no mês da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha a literatura da autora foi exaltada através das palestras, antes, foi colocada como inexistente pelo professor Ivan Cavalcanti Proença. Em abril, durante um evento que homenageou a autora, na Academia Brasileira de Letras do Rio de Janeiro, a colocação do também escritor fez com que Elisa Lucinda, convidada por Martinho da Vila para o evento, entrasse em um embate por Carolina, por mulheres negras e contra o racismo.
“No dia eu achei que tinha dormido, eu achei tão surreal. Sabe quando você não quer acreditar que ouviu aquilo? Na minha infância minha mãe diria: minha filha, não fale isso. É falta de educação. Foi falta de educação, no mínimo”. Após o evento, há quatro meses, a poeta publicou em suas redes sociais sua indignação com o texto: “A grande gafe eurocêntrica ou O desrespeito à Carolina de Jesus na casa da palavra ou Isso não vai ficar assim”. Leia: 

A grande gafe eurocêntrica ou O desrespeito à Carolina de Jesus na casa da palavra ou Isso não vai ficar assim.Dois…

Posted by Elisa Lucinda on Friday, April 21, 2017

“Ela consegue uma ingenuidade, somada há uma sabedoria, somada a uma destreza para nos levar ao ambiente com a maior tranquilidade. É isso que o contador de história tem que fazer, não é firula”, ressaltou Elisa durante o ciclo.

É importante lembrar que este é um apontamento constante. A discussão sobre a estrutura textual de Carolina sempre carrega uma característica: a de ter sido uma mulher periférica e catadora de papel, como se a obra fosse invalidada, ou só selecionada por tratar da fome, quando na verdade o discurso vai além. Isso nada mais é do que o racismo velado e estrutural, como conta Conceição Evaristo.

“O que eu tenho insistido muito, e que me causa uma irritação muito grande, é porque as pessoas leem Carolina, mas param no ‘Quarto de Despejo’. Leem como se ela estivesse fazendo só o relato da fome. Não dá para ler Carolina Maria de Jesus pensando apenas na fome física”.

Conceição, que leu pela primeira vez a obra nos anos 60, diz que é preciso olhar pessoas negras como sujeitos. Inclusive, quando Carolina lança seu segundo diário, “Casa de Alvenaria”, não é bem recebida pela elite literária já que faz uma crítica ao sucesso passageiro e outros pontos que cercam esses grupos.

“Por que todo mundo lê Clarice Lispector e percebe que ela está falando da solidão humana, das crises existenciais que Clarice tinha como pessoa? Por que não ler Carolina percebendo isso? Fica difícil essa percepção, que é uma mulher trazendo seu drama existencial? Pra mim é mais ou menos isso, é retirar do sujeito negro a nossa condição humana. É como se nós sofrêssemos apenas pela água que falta na bica, só pelo arroz que falta na panela. As mulheres pobres têm todas essas carências materiais, e temos nossas outras carências.”

A escritora não cria um embate entre as duas, mas sim pontua Carolina produzindo literatura com o uso diferenciado da escrita.

Durante o ciclo, Vera Eunice contou que a foto registrava um momento de exaltação de Clarice para Carolina. No entanto, a fotografia gerou há pouco tempo uma polêmica já que o escritor Benjamin Moser, autor da biografia de Lispector descreve o momento como se Carolina fosse uma subordinada. As últimas edições do livro não contam com o registro.

Um novo olhar sobre a  linguagem

Para que haja um entendimento dessa mudança entre acadêmicos, críticos, literários ou qualquer leitor, Conceição, propõe um olhar para o cotidiano, a forma de fato como as pessoas lidam com a escrita e fala diária.

“Uma das coisas que os críticos literários, academia, têm muita dificuldade em trabalhar com os textos de Carolina é porque ela não usa, faz um esforço, mas não usa as normas, que eu não chamo de normas cultas, mas de normas ocultas da língua, porque só algumas pessoas conseguem se apropriar dessas normas ocultas. Ela tem um projeto literário, um projeto de linguagem, tanto é que ela procura inclusive palavras que não são comuns.”

As obras de Bitita, apelido de Carolina quando criança, atravessam a fome em diversos momentos, mas talvez essa forma escrita que nada foge ou oscila da realidade tenha uma função maior. Carolina fez e faz escola, ela dá a chance para que mulheres negras, seja qual for a origem, estejam à disposição das leituras e releituras. Mostra que todas as narrativas importam, assim como de escritoras negras, que devem ser consideradas sujeitos, como ressaltou Conceição anteriormente.

Nascida em Belo Horizonte em 1946, Conceição Evaristo traz à tona obras nomeadas de “escrevivência”, escrita a partir de seu cotidiano e experiências pessoais

“Alguns críticos literários também já disseram que eu não produzo literatura, disseram que eu produzo memória. Por que que Pedro Nava pode ser memorialista e autores negros não podem? A grande distinção dele é porque ele é memorialista!”, diz Conceição.

A filha de Carolina Maria de Jesus, Vera Eunice, tem participado de diversos eventos sobre a  mãe, mas afirmou que ainda não consegue ler “Quarto de despejo”. No entanto, carrega consigo diversas histórias que enumeram as qualidades da escritora, que realizou o sonho de ter uma filha professora.

Ela conta que a mãe era considerada estranha, diferente, quando criança. “Diziam: ‘Que negrinha chata!’ Ela falava para a gente, contando que era mesmo chata e feia.” Em algum momento, na cidade de Sacramento, um local com a corrente espírita muito forte, ela foi levada por sua mãe em um centro da religião, já que ela tinha dores de cabeça constantes. Chegando ao local disseram:“Sua filha não é chata, ela é poetisa”.

Justamente por pessoas como essas é que os caminhos vêm sendo abertos. Conceições, Veras, Elisas. São essas que constroem uma nova perspectiva das narrativas negras. No caminho, ainda há de se encontrar muitos Ivans, mas enquanto houver Carolina, haverá literatura.  

“Há povos que aprendem a falar através da máscara e há povos que falam com tanta competência, que estilhaçam os orifícios da massa. Os subalternos também encontram atalhos que façam valer sua voz”, conclui Conceição Evaristo.