Conheça o ator que largou tudo no RJ para ensinar teatro na Bahia

Márcio Januário criou centro cultural em cidade litorânea com pouco mais de 20 mil habitantes

10/01/2018 10:11

Aos 52 anos, o ator, escritor e diretor Márcio Januário deixou para trás a vida no Rio de Janeiro (RJ) e mudou-se para a Praia de Algodões, na península de Maraú do Sul, na Bahia, para levar arte e cultura aos pouco mais de 20 mil habitantes do vilarejo. A ideia surgiu após um período de escassez de trabalho e de muita vontade de realizar.

Há pouco mais de um ano, Márcio Januário vendeu uma casa que tinha em Petrópolis e investiu todo dinheiro na construção de um centro cultural para ensinar teatro aos moradores – principalmente às crianças – da praia de Algodões. E o sonho tem dado certo. É tudo gratuito.

Alunos frequentam centro construído por Mário Januário em Algodões, na Península de Maraú
Alunos frequentam centro construído por Mário Januário em Algodões, na Península de Maraú

“Eu gosto de trabalhar com pessoas. Sou viciado neste negócio. Comecei com as oficinas de teatro e dança e é um sonho realizado ver o centro cultural funcionando”, destacou.

Desde o início do mês de dezembro, quando foi inaugurada, a sede da Cia Completa Mente Solta recebe moradores da península e turistas em cursos de teatro, aulas de capoeira, música, interpretação e criação de textos, dança, cineclube, atividades ligadas à cultura negra, além de bailes para idosos.

Assim, com recursos próprios e quase um ano de muito trabalho, ergueu a Cia Completa Mente Solta, com capacidade para atender 200 pessoas e com uma programação vasta. A ideia é que mensalmente, pelo menos 200 pessoas passem pela companhia, que foi construída e finalizada com a própria mão de obra de Márcio Januário. Ele conta que no final do ano entre 2016 e 2017, abandonou uma ideia antiga de morar em Portugal e fez uma viagem a Maraú, apenas para passar férias. Foi quando se apaixonou e decidiu se mudar.

“Eu me apaixonei pela praia deserta, pelas pessoas, pela maneira como as pessoas são gentis. Isso era algo que me incomodava muito no Rio de Janeiro, onde as pessoas são difíceis de lidar, então, pra eu me mudar e construir  uma outra vida, foi um passo apenas”, declarou o diretor.

O espaço recém-inaugurado vai contar também com espaço para culinária local, sala de yoga, além de sediar uma feira orgânica que oferece sarau de poesias, música e dança. “Tudo que é oferecido é gratuito para a comunidade local. Para os turistas, temos alguns pacotes”, comentou.

Outra preocupação do diretor é trabalhar a questão da ancestralidade. “Estamos fazendo um documentário com moradores antigos, para a região não perder a tradição local, que com a chegada do turismo e da poluição, foi perdendo muita coisa, inclusive a tradição da pesca, então queremos registrar e mostrar, para não acontecer a gentrificação que aconteceu no Vidigal. Vamos falar também das mulheres negras, da solidão da mulher negra, da mulher gorda”, anunciou.

Mário Januário ensina teatro em centro construído por ele mesmo
Mário Januário ensina teatro em centro construído por ele mesmo

Espetáculo remonta surgimento das favelas no Brasil

Um dos projetos que marcam o lançamento do centro cultural é a peça “Tratado Nº 5”, já exibida no Colégio Municipal Dr. Antenor Lemos e a agora na companhia em Maraú, que versa sobre uma noite de carnaval do protagonista, um favelado, negro e homossexual, que conversa com D. Pedro II e remonta o surgimento das favelas e a trajetória dos negros no Brasil.

O monólogo que tem texto, roteiro e direção de Márcio Januário teve a primeira versão premiada na 5° Mostra de Teatro de Petrópolis, em novembro de 2006, e representou o Brasil no 1° Festival Lusófono de Teatro de Matosinhos em Portugal, em fevereiro de 2009. A peça já foi apresentada em diversos teatros, escolas, faculdades e seminários ligados aos direitos humanos, onde sempre acontecem debates após as apresentações e agora estreia na Bahia.

“A conversa é sobre a realidade na favela e no mundo ao redor dela, na era das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e da opressão mascarada de liberdade de expressão. Esse anti-herói que tinha tudo para dar errado, deixa explícitos a construção e os motivos de sua fragilidade social, expondo criticamente situações que fazem parte da vida destas pessoas marginalizadas socialmente, ou seja, os negros, pobres, moradores de favela e membros da comunidade LGBT”, ressaltou o diretor.

Neste fim de ano, ele prepara-se também para as novidades de 2018, quando deve estrear a peça “A Caixa Branca”, escrita por ele mesmo e que integra a pesquisa desenvolvida desde 2010 com peças e personagens de William Shakespeare. Neste novo trabalho, Januário mergulha no universo dos relacionamentos online e da incapacidade de se estabelecer uma comunicação efetiva, apesar das múltiplas facilidades tecnológicas e do excesso de informação. Faz também parte desta série a peça Trans Hamlet Formation, já encenada na Alemanha, durante o Shakespeare Festival.

De diretor de teatro a escritor: personagens degenerados

Desde 2012, quando ainda vivia no Rio de Janeiro, Márcio Januário participa da Festa Literária das Periferias (Flup) e se interessou também pela literatura.

“Participo da Flup, desde a primeira edição, no começo meu interesse era a dramaturgia, mas durante o processo descobri que gostava de escrever contos com personagens marginais, assim a realidade de garotos de programa, travestis, gigolôs e pessoas que vivem à margem dos padrões sociais começaram a ganhar voz, corpo e vida. Em 2018 quero lançar um romance escrito na forma de mini contos com esses personagens degenerados, suas cicatrizes, belezas e acima de tudo força”, declarou.

Além do livro, Januário prepara-se também para lançar o conto “Dark Room”, que narra a trajetória de um homossexual isolado pela deformação causada pela utilização de silicone no rosto, fará parte da antologia Je suis favela, da editora Anacoana. O livro será lançado em Paris em março de 2018.

“Quero escrever, colocar no papel e no mundo o submundo que vivem os homossexuais, negros, favelados do Brasil. É meu estilo. Certa vez, o Julio Ludemir, que é o curador da Flup, me comparou ao Jean Genet, que é um dos meus autores prediletos, então, acho que estou no caminho certo”, destacou.