Constituição, 30 anos
Conversamos com três especialistas sobre a Carta Magna para entender seus efeitos três décadas após a promulgação
O relógio marcava 15h50 de 5 de outubro de 1988, quando o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, anunciou no Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF): “Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!”.
Resultado das agitações populares que, desde 1983, ganharam as ruas do país na luta pelo voto direto, a convocação da Assembleia Nacional Constituinte tornou-se indispensável ao futuro da democracia brasileira após 21 anos de ditadura militar.
Uma das bandeiras levantadas durante a campanha presidencial de Tancredo Neves, a proposta de convocação da assembleia foi realizada em junho de 1985 _ sob incumbência do presidente José Sarney. Meses depois, resultou na criação da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro.
Em 1987, foram eleitos 487 deputados e 72 senadores para compor a Constituinte. O deputado Ulysses Guimarães (PMDB) foi escolhido presidente da assembleia. Começavam, ali, os primeiros passos para a definição da nova Constituição brasileira.
Diante de um dos cenários políticos mais conturbados e imprevisíveis desde a sua promulgação, a Constituição completa 30 anos nesta sexta-feira, 5 de outubro, às vésperas da eleição presidencial.
Para entender suas conquistas sociais, garantias jurídicas e eventuais riscos ao seu cumprimento, conversamos com três especialistas sobre o tema e sua importância para os dias atuais.
Doutora em Direito Constitucional, a professora na Faculdade de Direito da PUC-SP, Adriana Ancona de Faria, avaliou as principais conquistas da Carta Magna. Por se tratar de uma Constituição escrita logo após o processo de redemocratização, seu texto visa oferecer recursos que garantam os direitos sociais e, em função disso, é marcada pela democracia direta, avalia a professora.
“A Constituição trouxe várias garantias fundamentais e, em diferentes níveis, num conjunto imenso de direitos que propõe liberdade e autonomia previstos em seu Artigo 5º. Tem posicionamento de aplicação imediata e que assegura diversas conquistas para muitas áreas como saúde, educação, previdência e índios.”
Para a professora, embora algumas mudanças sejam necessárias, declarações que sugerem o cerceamento dos direitos civis são inaceitáveis. “Nos últimos tempos, aconteceram declarações em níveis distintos e algumas perigosas, como acabar com a Constituição e criar um grupo iluminado para escrever uma nova legislação. Isso é inaceitável. Quem tem que dizer o que quer para o país é o povo, via Congresso Nacional, com apoio do eleitor”.
Cenário pós-ditadura e a Constituição
A professora e diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC), Maria Garcia, recorre à teoria da “vontade de Constituição”, cunhada pelo jurista alemão, Konrad Hesse, para refletir as conquistas de 1988.
Segundo o teórico, é necessária a crença de que a Constituição não abra caminho para governos autoritários ou contrários às demandas do povo. E que, além disso, precisa sempre estar em processo de legitimação. Sobretudo em contextos históricos que ofereçam risco às garantias. “Sem dúvida, 30 anos após sua promulgação, a Constituição de 1988 teve o mérito de ser bastante conhecida, bastante discutida, no sentido de podermos pensar numa ‘vontade de Constituição’.”
Apesar disso, critica a ausência da participação popular na tomada das decisões, que, segundo ela, abre caminho para a corrupção sistemática do Estado _ em referência às dezenas de processos judiciais envolvendo políticos nos últimos anos. “Restam-nos as palavras inesquecíveis de Tancredo Neves, repetindo Tiradentes: ‘Se todos quisermos, faremos deste país uma grande nação. Vamos fazê-lo’.”
Direitos humanos e necropolítica no Brasil
Para o advogado e professor de Direito Constitucional Pedro Serrano, os modelos de Constituição idealizados no contexto do pós-guerra europeu tiveram influência determinante na Carta de 1988. Quando, segundo ele, os direitos humanos deixam de ser vistos como mera pauta política e passam a ser vistos como uma pauta jurídica imposta aos Estados.”No plano internacional, surge a declaração dos direitos humanos, em 1948, e a partir dali se constrói um sistema mundial de defesa dos direitos humanos. É uma ideia de que a soberania deve existir, desde que o Estado trate o cidadão de forma civilizada.”
Serrano pontua que, com o fim da ditadura, a sociedade se caracterizava por dois traços marcantes: uma forte tendência democrática e a questão da liberdade como fator fundamental da vida social. “No Brasil, nós já tínhamos Constituições rígidas anteriormente, sempre em crise de eficácia e sem clareza de sentido. A partir da Constituição [de 1988], chega ao Brasil o modelo do pós-guerra que se estabelece com sementes antiautoritárias.”
Sobre as conquistas da Carta, o professor enfatiza os ganhos sociais, embora não deixe de reconhecer uma mudança do paradigma jurídico adotado há três décadas. “Foi um grande avanço porque trouxe ao Brasil os benefícios jurídicos e políticos democráticos, estabelecendo uma grande pauta de direitos humanos e fundamentais como é típico dessas Constituições. Mas logo depois da sua promulgação, na década seguinte, começa a sofrer uma crise na sua aplicação, na aplicação de seus direitos, gerando medidas de exceção, que se tornam uma patologia no sistema constitucional.”
Em um campo político cada vez mais marcado pelo avanço de pautas retrógradas e que, não raramente, atacam direitos mínimos conquistados pela sociedade brasileira, o jurista chama atenção para o desmonte de conquistas históricas. “No Brasil, todo mundo fala que tem crise política, crise econômica, mas nós temos também uma crise constitucional, que é exatamente essa não universalização dos direitos fundamentais. A não eficácia deles e a redução do seu alcance por um processo desconstituinte composto por medidas de exceção no interior da democracia.”
Para isso, exemplifica a ocupação militar nas periferias do país, a criminalização da população negra e pobre e o consequente aprisionamento em massa ocorrido no país desde o início dos anos 90 _ fenômeno a que se refere como necropolítica brasileira, teoria que visa tratar uma parte da pobreza fazendo controle social através da morte e do encarceramento.
O STF e uma nova Constituinte
Em meio às promessas dos candidatos ao Palácio do Planalto, a proposta de uma nova Assembleia Constituinte foi citada por dois postulantes à Presidência. Para “restabelecer o equilíbrio entre os Poderes da República e assegurar a retomada do desenvolvimento, a garantia de direitos e as transformações necessárias ao país”, o petista Fernando Haddad apresenta em seu programa de governo a criação de uma assembleia “livre, democrática, soberana e unicameral”.
Quem também se manifestou sobre o assunto foi o candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro (PSL) , Hamilton Mourão. Recentemente, o general propôs “uma comissão de notáveis” _ que, neste caso, não incluiria a participação de membros eleitos pelo povo e sim nomeados _ para reformar a Carta Magna de 1988.
Na última terça-feira, 3, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, rebateu as propostas dos candidatos por acreditar que uma nova Constituinte pode piorar o pacto de direitos estabelecido há 30 anos. “A despeito dos problemas, esta pelo menos é a Constituição mais estável que já tivemos. É aquela que evitou golpes, não ensejou tentativa de tomada de poder”, disse o ministro. “Por isso ela tem valor em si mesma, um valor intrínseco que precisa ser cultuado. Por isso que, também por outras razões, me repugna qualquer ideia de Constituinte, miniconstituinte”.
O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, também criticou a proposta em entrevista a portais jurídicos, alegando que não vê motivos para uma Assembleia Constituinte. “Aí nunca vamos chegar a lugar nenhum. Se a cada período de tempo nós quisermos reconstruir o pacto nacional, não conseguiremos ter uma estabilidade institucional”, disse Toffoli ao site jurídico Jota.