A dor de uma mãe: ‘A morte da minha filha foi pura transfobia’
Quase dois anos após o assassinato da filha, Zilda Vermont luta por justiça e pede para que as famílias aceitem os filhos trans em entrevista para a série "Mães que TRANSformam"
Zilda Vermont tem 55 anos, está no segundo casamento e teve três filhos, duas meninas e um menino, o caçula. O filho mais novo nasceu David Laurentino Vermont e, aos 16 anos, assumiu a identidade de Laura Vermont. Mas Laura não teve muito tempo para desfrutar a liberdade de ser quem era. Pouco depois de completar 18 anos, a jovem foi brutalmente assassinada por sete pessoas, incluindo dois policiais.
Na entrevista para a série Mães que TRANSformam, Zilda conta que sempre aceitou a filha, fala sobre o medo da transfobia e dá um recado para as mães de filhos e filhas transexuais: “Aceitem seus filhos, em primeiro lugar está o amor!”.
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Zilda Vermont – A Laura sempre foi demais. De tudo ela fez. Ela foi skatista, depois foi tipo roqueira, com aquelas roupas pretas e folgadas, com casacão e cruz no pescoço. Depois de um tempo, ela chegou pra falar com o pai. A primeira pessoa com quem ela falou foi o pai, porque ela sabia que comigo não teria problema. Ela chegou pra ele e contou que gostava de menino e de menina. Daí depois eu descobri que ela usava as minhas roupas escondida. Até que ela me contou que estava usando mesmo e perguntou se eu não percebia. Eu perguntei onde ela se trocava, e ela me disse que na rua pra que o pai não visse. Eu disse que, a partir de então, ela poderia pegar as roupas que quisesse e iria se trocar em casa.
Qual foi a reação do pai dela? E quando ela deixou de ser David e adotou o nome Laura?
Ela então voltou a falar com o pai e foi logo perguntando: “Pai, o senhor se importa deu me vestir de mulher?”. Ele falou que ela tinha que se sentir bem do jeito que quisesse. Daí a Laura já entrou no quarto e trocou de roupa. Ele só disse pra ela ficar ciente como eram as coisas na rua e que seguraria ela mais ainda em casa. Eu ainda brinquei com ela dizendo que mulher tinha que ficar mais dentro de casa mesmo. Mas ela já foi dizendo que era jovem e queria aproveitar. Na mesma hora ela já chegou e anunciou “meu nome agora é Laura Vermont”. A partir daí ela também passou a se vestir só de mulher, toda maquiada, bem arrumada e bonita. Ela estava pra fazer 16 anos. Mas ela sempre gostou de boneca, desde pequena. E nós nunca fomos contra. Ela queria e a gente comprava. E assim a gente fazia.
Qual o motivo da morte da sua filha?
Minha filha foi espancada e chutada por cinco indivíduos. Eles gritavam “mata que é travesti, não é mulher!”. Tenho vídeo registrando tudo, do assassinato. Foi tudo filmado na rua, os cinco batendo, na porta de uma padaria. Ela entrou pra pedir socorro, mas puseram ela pra fora. Pra você ver como é a transfobia. No bairro onde nasceu e foi criada, fazerem isso. Meu marido foi depois na padaria, mas eles falaram que não reconheceram a Laura. Eles disseram que, se tivessem reconhecido, teriam protegido. Mentira! E qual a diferença entre reconhecer ou não reconhecer? É um ser humano que está ali, mas ninguém a socorreu. Depois passou uma viatura na avenida, os policiais pararam, olharam e saíram rindo. Essa mesma viatura pegaria a Laura mais na frente. Eles jogaram dois frascos de pimenta na minha filha. E ainda teve o tiro. No boletim de ocorrência, consta que a Laura tentou dirigir a viatura da polícia, por isso eles fizeram o que fizeram.
Como a senhora se sente diante da transfobia?
É revoltante demais. A morte da minha filha foi pura transfobia. Eu não sabia que era desse jeito. Se eu soubesse, eu não sei se conseguiria amarrar a Laura em casa, mas eu tentaria porque o preconceito é demais. Mas estou de pé porque eu tenho um objetivo: lutar pelas trans que estão sofrendo preconceito agora e por justiça pelo que fizeram com a minha filha.
Qual recado a senhora dá para outras mães de transexuais?
Minha filha não morreu, minha filha está viva. Por causa do assassinato dela, muitos pais que não aceitavam os filhos estão aceitando. E não importa o que outros falem, mas é preciso que a família dê apoio. Porque se a gente que é família não dá apoio, imagina lá fora. Olhem o que aconteceu com a minha filha! Hoje eu vivo por justiça e peço a todas as mães que nos ajudem a combater essa violência e essa intolerância. E as mães que têm seus filhos gays, lésbicas, trans, travestis, seja lá o que for, que procurem apoiar. Porque hoje eu vivo pra procurar as mães que não aceitam pra que elas aceitem e deem bastante amor, porque em primeiro lugar está o amor. E o verdadeiro amor não conhece preconceito.
Como a senhora tem buscado conforto desde então?
Eu não sabia o que eram cartas psicografadas. Vi na televisão depois de poucos dias que minha filha tinha partido. Eu peguei o telefone e o endereço e fui parar em Lorena, eu e meu marido. E foi onde nós encontramos apoio recebendo cartas psicografadas da Laura. Nas cartas, ela pede pra gente lutar pelas trans que estão aqui, pra que não aconteça com elas o que aconteceu com a Laura. Eu vou sempre e sempre recebo as cartas da Laura. Eu não consigo ficar sem ir porque lá foi onde eu consegui um aconchego. Muitos falam que isso é abobrinha, mas ela está aqui comigo, eu sinto. Eu sinto o espírito da minha filha nas cartas que eu procuro. Até a assinatura é a mesma. Ela sempre assina dos dois jeitos, com os dois nomes, David Laurentino e Laura Vermont. E ela sempre pede pra eu não chorar. É o que ela mais pede.
Atualmente, existe um Centro de Cidadania que leva o nome da sua filha. Como ele funciona?
O Centro de Cidadania Laura Vermont foi inaugurado há cerca de um ano. Ele fica na Avenida Nordestina, em São Miguel, zona leste de São Paulo. É um Centro muito bonito que funciona pelas causas LGBT. Quem chegar lá precisando, eles vão dar apoio. Tem psicólogo, advogado, tem cursinhos. Ele foi fundado com a ajuda da advogada Iara Matos Guimarães, que trabalha com Direitos Humanos e foi a primeira pessoa que apareceu pra nos socorrer depois da morte da minha filha. Sempre que posso, eu vou ao Centro de Cidadania, porque lá eu sinto a presença da Laura.
Ela também foi homenageada em uma Parada Gay. Como foi essa experiência?
Sim, teve a Parada Gay Laura Vermont, em São Miguel. Foi muito bonita, mas eu estava muito sensível no dia. Quando eu cheguei lá pra falar, não consegui. Eu disse pras meninas, pras trans: “Eu tô passando mal, não vou conseguir falar”. Eu desmaiei o tempo todo, então tiverem que me trazer pra casa, não consegui ficar até o final. Mas eu vi as fotos e foi muito bonita mesmo, a 1ª Parada Gay da Zona Leste.
A senhora acredita na Justiça?
A Laura era minha companheira. Minhas outras filhas estão casadas, morando longe, então era só nós três dentro de casa, eu, meu marido e a Laura. Era muito bom, olha… Pense em uma casa que uma hora dessas estaria lotada, todo mundo comendo, bebendo, se divertido. Era alegria demais dentro de casa. Como se diz, era puro fervo. E hoje é assim… Eles acabaram com a nossa família. Mas eu vivo por justiça. Eu não vou parar, não. A morte da Laura não vai ficar em vão. Estamos no mês de maio e cadê a minha filha? Os assassinos estão com as mães deles, mas eu não estou com a minha filha. E cadê a nossa Justiça, hein?
- Esta é a quinta entrevista da série de reportagens “Mães que TRANSformam”, na qual trazemos histórias de mães que ultrapassaram diversas barreiras impostas pela sociedade para quem é transexual e transgênero.
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