Editora lançará escritores periféricos em favela de SP

Projeto ensinará aos autores todos os procedimentos manuais da produção de um livro

Com cerca de 200 mil moradores, Heliópolis reúne 18 mil imóveis e 3 mil estabelecimentos comerciais – Fonte: Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região).
Créditos: Ricardo Stuckert
Com cerca de 200 mil moradores, Heliópolis reúne 18 mil imóveis e 3 mil estabelecimentos comerciais – Fonte: Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região).

Nesta sexta-feira, 30, a Editora & Gráfica Heliópolis chega a uma das maiores favelas de São Paulo para contar histórias e, com elas, realizar o sonho de escritores anônimos à margem do interesse dos grandes grupos editorais do país.

Na contramão do privilégio, o ator, cineasta, escritor e agente cultural, PC Marciano dá vida ao projeto que, semelhante a uma cooperativa, ensinará aos autores todos os procedimentos manuais da produção de um livro: diagramação e editoração, impressão, encadernação. Até o término do projeto, serão lançados 50 volumes. A editora teve apoio do edital Rumos Itaú Cultural.

O propósito da iniciativa se confunde à trajetória de PC Marciano. Morador de Heliópolis, escreveu o primeiro romance de sua carreira em 2009, e assim como outros autores anônimos também não encontrou lugar no mercado editorial. “Me perguntei se seria o único escritor de Heliópolis. Aí pensei, não pode ser””, foi quando teve a ideia de sair às ruas do bairro para descobrir outras histórias como a sua.

Na mesma época em que mapeava autores da comunidade, PC foi convidado a lançar o livro, mas, ali, seu propósito já ia além do próprio benefício. “Fui vendo que eles sofriam a mesma dificuldade que eu. Então, acabei abrindo mão dessa oportunidade de ser lançado por uma editora, para pensar em como todos nós poderíamos ser publicados”, explica.

Ao ouvir outros escritores do bairro, descobriu que o principal obstáculo para a publicação das obras estava no custo da produção. O que os levava a desistir antes mesmo de concluir a obra. Para Marciano, a iniciativa representa o resgate de sonhos interrompidos. “A literatura em Heliópolis já existe, mas está no texto falado. Agora vai para o papel”.

A Editora Gráfica Heliópolis materializará volumes da Escola Municipal Presidente Campos Salles, que, todos os anos, promove a publicação dos livros dos alunos-autores frequentadores da oficina de literatura. Além disso,  está aberto a todas as escolas públicas de Heliópolis e região, e à comunidade.

Para além dos livros 

Além dos livros publicados, o projeto promoverá trabalhos com ONGs, coletivos e outras atividades que se propõem a discutir temas como violência contra a mulher, racismo, preconceito e políticas públicas.

O objetivo é potencializar esses grupos, para que eles publiquem seus trabalhos.”Promoveremos bate-papos em escolas, intercâmbio entre coletivos culturais, visitas em instituições, concursos literários e outras ações, que nos ajudarão a refletir e criarmos senso crítico na comunidade, tanto para a resolução de problemas, como na visão de nosso papel de cidadão, para atuarmos juntos em prol de um mundo melhor”.

Estimular a leitura dentro da comunidade também é uma preocupação do projeto. “Acredito que essa agitação ajudará bastante a adquirirmos novos leitores e não somente escritores”, diz PC Marciano. “Seremos instigados a lermos os livros dos nossos vizinhos”, afirma. “O nosso projeto fica dentro de uma biblioteca, no CEU Heliópolis, então vamos fazer várias atividades com esse intuito, sem contar que teremos uma estante exclusiva para as nossas obras”.

Nas entrelinhas da literatura periférica

A cerca de 20 quilômetros da editora está um dos berços do movimento literário periférico paulistano: o Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá, que, desde o fim dos anos 1990, reúne porta-vozes da poesia marginal brasileira nas noites de terça-feira.

O endereço é símbolo de um fenômeno cultural que ganhou força e representatividade em bares, escolas, praças e todo e qualquer canto à margem da academia: seja na poesia dos slams e dos saraus.

Questionada sobre a importância da corrente literária periférica, a pesquisadora e jornalista Jéssica Balbino destaca o poder de transformação social através das palavras.

Ressalta o caráter espontâneo do movimento, que, segundo ela, nasce a partir de três elementos: a impossibilidade, a falta de recursos e a opressão, que, no nono país mais desigual do mundo, encontra terreno frutífero para o seu florescimento. “A literatura marginal/periférica que passa pelos saraus e slams do Brasil é o que há de mais poderoso atualmente, do meu ponto de vista. É onde a democracia da palavra ocorre. Onde as pessoas podem falar, artisticamente, por meio das poesias, sobre qualquer tema que as incomoda.  O grande barato é isso: é democrático. Não existe limite de idade, aparência, tema, nada. É chegar, ser poesia e voz e se expressar. E o movimento tem crescido. Temos slam no Brasil há 10 anos e atualmente há 160 comunidades espalhadas, o que é muito incrível bem como os saraus, que ocorrem em bares periféricos, em casas de cultura, escolas, bibliotecas. É a chance em que todo mundo pode cruzar a linha entre ser público e ser protagonista. Todo mundo pode contar a própria história e é tudo pautado em muita luta.  Eu acho bem mágico”.

A Editora & Gráfica Heliópolis ficará no CEU Heliópolis (Estrada das Lágrimas, 2385. Estação de metrô mais próxima: Sacomã). Um local público, de portas abertas para a comunidade, mas que também vai ser espaço vivo, que vai até as pessoas para levar histórias, ouvir e escrevê-las com o nosso público”.

Abaixo, confira um pouco mais sobre o projeto na conversa que tivemos com PC Marciano:

  •  Qual a importância do projeto para a periferia de São Paulo?

PC Marciano: Nas periferias em geral, a manifestação em forma de arte fervilha. A palavra é utilizada de diversas formas, exceto em publicações de manuscritos,  pois a sua produção é cara e o nosso público está inserido na camada de vulnerabilidade social.  Este projeto surge para dar o acesso a publicação de quem tem o que dizer.

  • Como o movimento literário periférico, com o aumento dos saraus na periferia, e outras ações culturais em todo o país, pode contribuir a educação das novas gerações na periferia ?

PC Marciano: Acredito que em primeira instância essa produção leva a informação e consequentemente provoca novas ações.  Com isso temos uma população mais politizada e empoderada. Quando as pessoas começam a “respirar” a cultura, isso altera profundamente a sua mente e, consequentemente, a sua forma de agir. O indivíduo deixa de absorver tudo o que é imposto a ele e começa a ser um agente questionador, portanto, uma pessoa que desenvolve senso crítico de suas próprias ações e tudo o que acontece a sua volta.

  • Qual a importância da literatura como ferramenta de transformação?

PC Marciano: Toda e qualquer mudança nasce primeiro do desejo e da imaginação. A literatura tem um papel fundamental na transformação do indivíduo e, consequentemente, da sociedade em que ele vive. Os livros são e sempre serão o meio mais democrático de compartilhar conhecimento.

Ele pode chegar a qualquer um. Embora a internet tenha alterado profundamente o mundo, o Brasil ainda está longe de ser totalmente integrado aos meios digitais e os livros continuam sendo muito importantes para transmitir a
cultura, a educação e também o lazer.