Fotógrafo registra ocupação de gays, trans e drags no Recife
“Falar de pessoas e compreendê-las”. A pequena sentença, que carrega um grande significado, foi dita pelo fotógrafo Filipe Mendes, responsável por um registro sensível feito recentemente na ocupação Big brother, no Recife (PE). Jornalista por formação, a vontade de mergulhar nas histórias das pessoas veio a partir das andanças em comunidades quilombolas pelo seu estado.
Ele também desenvolve um projeto urbano chamado de Sensorização Etnográfica. O ensaio de gênero, que você verá abaixo, faz parte desse trabalho. As imagens narram a preparação de uma drag queen, no barraco onde vivem dois homossexuais. Logo após a galeria, confira uma entrevista bem bacana com o fotógrafo.
Catraca Livre: Você comenta em seu texto na Medium que demorou muito tempo para voltar ao Big brother. Por que decidiu retornar?
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Filipe Mendes: Quando éramos um pouco mais jovens andávamos libertos e descalços pelas ruas do Recife, descobríamos os becos, as bocas e vielas. As comunidades nas beiras de canais, as invasões e os guetos chamavam a minha atenção, talvez por vir do interior, ou por um sentimento encarnado no meu comportamento que me levava a uma displicência na maneira de vestir-se, de falar e andar. Eu queria viver ali com eles. Foi quando a maturidade me fez despertar e segui desenvolvendo minhas habilidades. Errei em muitas vontades de ser alguma coisa, mas acertei na última que conta histórias da vida das pessoas lindas e cheias de problemas. O Big brother é um desses lugares que eu enxergava com tanta naturalidade que resolvi trazer para o meu novo mundo os repetidos problemas do mundo velho.
CL: Como você conheceu a comunidade e quais fenômenos acontecerem durante esse período para que ela se tornasse o que é hoje?
F.M.: O prédio era uma antiga fábrica têxtil que por algum motivo faliu. Até hoje chegam as contas de água e luz na caixa dos correios, mas não cheguei a ver ela em atividade. Sou da época que os barracos já estavam divididos e alguns sendo vendidos por algumas famílias com os seus motivos. Tornei-me amigo de uma família da ocupação e na época o clima era bem tenso, foi naquele boom do crack na cidade e havia noiados por toda a parte. Perigoso? Eu não sentia, era sempre bem recebido e aos poucos me tornei amigo de grande parte da ocupação. Atualmente o clima é completamente diferente, muitas crianças e trabalhadores que retornam ao escurecer. Fizeram reformas nos barracos, mobiliaram e até montaram uma escolinha de capoeira no térreo.
CL: A gente vive numa época de cunhas, malafaias, felicianos, o que justifica ainda mais um trabalho como este para desconstruir a marginalização de gays e trans na periferia. O que pensa a respeito? Qual o objetivo de seu ensaio?
F.M.: Um desses barracos é a casa de dois homossexuais, um deles trabalha durante o dia numa casa de material de construção e nas sextas-feiras se transforma em drag queen que se apresenta numa boate do centro da cidade. O ensaio trás a ideia das diversas identidades de gênero com um agravante que é ser negro numa cidade grande do nordeste. Durante as fotos ela mencionava repetidas vezes enquanto mudava de posição: “Você é rica!”. Um fato curioso aconteceu quando resolvemos descer para o meio dos carros no horário de pico para fazer uma única foto rápida. Foi o tempo de um sinal vermelho, os carros buzinavam, as pessoas gritavam, zombavam, não era um gesto de valor, mas de deboche e preconceito. Até então estávamos envolvidos na magia do personagem drag, naquele momento sentimos o peso, caiu a ficha e subimos para o barraco. Ela chegou, tirou a roupa, a peruca e o silêncio.
CL: Apreciando as (belas) fotos, nota-se o conforto ao serem fotografadas. Como foi essa troca e como eram realizadas as sessões?
F.M.: Fiz somente uma exigência, queria participar da transformação. Eu chamo de ferir a intimidade, mas com respeito e sutileza. Eu não sei explicar, pois é tudo muito natural. Ela me disse que conseguiria fazer tudo só, mas para agilizar o processo chamou um amigo gay maquiador enquanto a travesti palpitava nas roupas e traquejos da maquiagem. Aproveitei essa transparência entre eles e consegui contar a história mágica da transmutação até chegar em seu trono em cima da laje. Lá ela abraçou o mundo.