Gordofobia levou jornalista a contrair HIV e quase morrer de Aids
Ela está concluindo um curta-metragem sobre o tema em Cuba
Uma das formas mais eficientes de manter o poder é fazer com que o outro, seja pelo motivo que for, se sinta inferior e aceite condições degradantes como se fossem naturais ou necessárias. A cinepoeta Marina Vergueiro quase morreu de Aids pela falta de amor próprio originada e cultivada pela gordofobia e pelo machismo.
“Eu sofri a minha vida inteira com gordofobia e pressão estética”, contou em entrevista à Catraca Livre. “Eu achava que nunca ia ser amada, e eu queria tanto amar.”
Por uma fragilidade no amor próprio, Marina se sujeitou a ter relações sexuais sem preservativo com um parceiro e acabou sendo infectada pelo HIV. “Minha vida não é responsabilidade do outro. Por causa da minha falta de autoamor, porque eu me ‘sinto uma mulher gorda’, eu pensava que eu não conheceria o amor.”
“Quando eu encontrei o amor, falei: preciso viver isso. Eu vivi isso, e quase morri de Aids.” A experiência, que agora completa dez anos, fez com que outra Marina, segundo ela mesma, surgisse.
Jornalista, poeta, cineasta e autora de “Exposta”, ela está na conclusão de um curso de cinema em Cuba, com a produção do curta “Cartas para Mim”.
Catraca Livre – Por que o cinema?
Marina Vergueiro – Eu fui estudar cinema porque comecei a sentir um pouco das fronteiras da minha poesia. Não é todo mundo que tem acesso à poesia, muitas vezes até pelo preconceito de achar que é uma coisa muito distante da realidade. Durante a pandemia, eu comecei a me dedicar cada vez mais ao documentário, assistia a documentários diariamente. Como jornalista, também é um gênero que me interessa muito. Eu já fazia uns pequenos curtas para divulgar os meus poemas. Então, foi um dos motivos que me fizeram vir estudar em Cuba. Não foi só por essa necessidade de me expandir como artista -a minha mensagem, a minha arte, o meu público-, mas também maneiras de sensibilizar as pessoas. O projeto final é o curta que se chama “Cartas para Mim”.
Sobre o que é “Cartas para Mim”?
Todo o processo de autoconhecimento traz algum tipo de dor. Eu não acho que necessariamente é algo ruim, porque se conhecem coisas muito boas e lindas da gente. Dentro do meu trabalho, da minha vida, mulheres LGBT vivendo com HIV é um tema super importante.
Eu vim pra cá com a ideia de fazer um documentário. Eu fiquei buscando uma personagem durante um tempo e, nos meus períodos de folga das aulas, encontrei uma personagem muito interessante num documentário que eu assisti sobre mulheres lésbicas em Cuba, chamada Cary . Na época, ela era casada, tinha um filho e daí, quando se descobriu lésbica, teve uma depressão muito forte e resolveu que queria se matar. Um primo dela deu o sangue dele com HIV -e ela se injetou o vírus. E o meu filme se desenvolveu nisso, na minha busca por Cary, que era a minha busca por mim mesma. As perguntas que eu queria fazer para ela eram questionamentos para mim mesma.
Eram diversas questões relacionadas à afetividade e à sexualidade pós-diagnóstico. O HIV, na realidade, salvou a vida dela. Ela teria se matado de uma maneira muito rápida, mas fez isso com o HIV e, hoje, está mais viva que nunca. Ela tem um netinho, se apaixonou por uma outra mulher e está feliz vivendo a vida dela com saúde. O filme não é só sobre mim, mas acho que é sobre todas as pessoas.
E por que em Cuba?
O fato de eu estar em Cuba é muito especial, sabe? Porque Cuba é um país que lida de uma maneira muito diferente com o HIV. Em 2015, Cuba se tornou o primeiro país do mundo a eliminar a transmissão de HIV vertical, de mãe para filho.
Como você avalia o combate à Aids no Brasil?
É como se a gente [mulheres] não existisse por conta do estigma que surgiu na década de 1980, de que a Aids é sempre relacionada a gays ou mulheres trans. No Brasil, as mulheres ainda não são 50% dos infectados, mas estão em uma curva ascendente já há muitos anos, principalmente por causa do machismo. Os homens não cuidam da própria saúde e, a partir daí, não sabem o seu próprio estado de saúde. Depois, há essa relação de posse, de objetificação do corpo feminino, que faz com que eles achem que são nossos donos, e que podem decidir ou não o tipo de relação sexual com suas parceiras -por exemplo, se vão usar preservativo ou não. Muitas das infecções, inclusive a minha, aconteceram dentro de um relacionamento monogâmico -da minha parte, pelo menos. Por que os homens não vão se testar? Se eles estão aí, no geral, com o “pinto solto”… Fora que consideram um ataque pessoal a eles quando a gente quer cuidar do nosso próprio corpo usando preservativo.
Como foi o seu diagnóstico?
Foi depois de eu estar internada no hospital por dez dias, literalmente morrendo. Eu estava muito doente e não melhorava. Fui ao médico e desmaiei no estacionamento, então fui levada direto para o pronto-socorro. Lá, acabei sendo imediatamente internada na semi-intensiva. Eles me deram remédio para tudo, menos para HIV. Na cabeça deles, uma mulher branca em um hospital no bairro nobre de São Paulo “não tem Aids”. Isso por causa do racismo também, a Aids é associada, ainda hoje, a pessoas pretas. Esse preconceito é muito difundido em nossa sociedade.
Por conta disso, eu quase morri. O que estava me matando era a doença oportunista padrão de que tem Aids, coisa básica. Se eu fosse gay, um homem gay, eles teriam feito o teste. Além de racista, é machista também. O diagnóstico foi um choque, eu fiquei muito assustada, psicologicamente, foi um baque. Só que eu tinha, ainda tenho, uma rede de apoio, que é muito importante, é essencial pra gente ter adesão ao tratamento.
O que poderia melhorar na conscientização sobre a Aids e o HIV?
Com certeza devem existir muitas pessoas famosas, artistas conhecidos e superpopulares no Brasil que vivem com HIV. Eu não tenho dúvidas disso. Não foi só nos anos 1980, nos anos 1990. As pessoas continuam transando, sim, e continuam transando sem camisinha, sem prevenção. O problema é o estigma. Hoje, você pode viver uma vida normal com o HIV, não vai morrer. Pode ser gordinha que nem eu e ter HIV. Você não tem aquela “cara da Aids”, como se falava no passado. Então por que não tem mais pessoas indo falar abertamente sobre isso? Artistas batendo no peito e falando: “eu tenho HIV”. Porque eles vão perder contatos publicitários. A gente não tem uma pessoa tão famosa advogando na nossa causa, e isso é uma tristeza muito grande pra mim. Eu queria tanto que a gente tivesse orgulho LGBT, e ter orgulho também de viver com HIV. Não é uma vergonha. Eu acho que tem que respeitar cada pessoa de viver ou não o seu diagnóstico publicamente. Mas falta alguém falando abertamente sobre isso, como falam sobre qualquer outra questão relacionada à prática sexual. Para acabar com um estigma.
Direitos de quem vive com HIV
A lei 12.984, de 2 junho de 2014, assinada pela então presidenta da República, Dilma Rousseff, define o crime de discriminação dos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e dos doentes de síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids).
Art. 1º Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as seguintes condutas discriminatórias contra o portador do HIV e o doente de aids, em razão da sua condição de portador ou de doente:
I – recusar, procrastinar, cancelar ou segregar a inscrição ou impedir que permaneça como aluno em creche ou estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado;
II – negar emprego ou trabalho;
III – exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego;
IV – segregar no ambiente de trabalho ou escolar;
V – divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de aids, com intuito de ofender-lhe a dignidade;
VI – recusar ou retardar atendimento de saúde.
Para admissão e demissão no emprego, não pode haver exame obrigatório de HIV.
A lei 14.289/22, por sua vez, obriga a preservação do sigilo sobre a condição de pessoa infectada pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV), hepatites crônicas (HBV e HCV) e de hanseníase e tuberculose.