Ivone Gebara: a freira feminista defensora do aborto
Ivone Gebara é uma das fundadoras do grupo Católicas Pelo Direito de Decidir
Ivone Gebara nasceu em 1944 na cidade de São Paulo e é a segunda filha de três da união entre imigrantes da Síria e do Líbano que se conheceram no Brasil. Ingressou à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora-Cônegas de Santo Agostinho – em 1967, quando tinha apenas vinte e dois anos. Com mais de 30 livros publicados, entre eles Mulheres, Religião e Poder (2017) e Teologia Ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião (1997), ela é doutora em Filosofia pela Universidade Católica de São Paulo e doutora em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovânia na Bélgica.
“O mundo da religião entrou em mim cedo, talvez não diretamente através de meus pais que, embora cristãos, não eram assíduos frequentadores de nenhuma Igreja. Acho que o gosto pela religião começou na minha infância, pois estudava em colégio de religiosas. Tinha a impressão que a religião oferecia um mundo de harmonia e beleza. Estudei filosofia e, na faculdade me senti atraída pela vida das freiras intelectuais e ativistas que dirigiam a faculdade onde eu estudava. Era a PUC que naquela época tinha um setor para mulheres e outro para os homens”, contou a freira.
Fosse apenas pelo que foi descrito até aqui, sua biografia comprovaria apenas o óbvio: se trata de uma mulher forte e genial. No entanto, irmã Ivone consegue ir além e, com muita coragem, se destaca também por opiniões consideradas dissonantes do consenso religioso. Para começar, ela se declara, com muito orgulho, uma teóloga feminista e, sendo assim, ajuda a expandir o entendimento da religião em favor dos pobres, em defesa da vida das mulheres e contra todo machismo eclesiástico.
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“Freira feminista não tem uma definição precisa. Sou freira porque acreditei na entreajuda entre as mulheres religiosas para realizar o que chamávamos na época de o Reino de Deus, ou seja, trabalhar para uma vida de justiça, sobretudo, para os mais pobres através de uma multiplicidade de atividades. Me tornei feminista no inicio dos anos 1980. Eu entrei na Congregação em 1967. Fui me tornando feminista através das feministas que conheci, através das leituras que fiz e através de um longo aprendizado que continuo ainda a fazer de observar, perguntar, me informar sobre a vida das pessoas. Ser feminista é perceber e lutar contra a desigualdade antropológica, cultural, religiosa, social e econômica em que vivem as mulheres e a violência que sofrem em seus corpos de diferentes maneiras”, define a religiosa.
Além disso, ela não se intimida em fazer duras críticas e a questionar a Igreja Católica sobre conceitos ultrapassados, se posicionar publicamente a favor do aborto e a defender o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Em 1993, ela ajudou a fundar o Católicas Pelo Direito de Decidir (CDD), organização que apoia-se na prática e teoria feministas para promover mudanças na sociedade, especialmente nos padrões culturais e religiosos. A criação da ONG vem da necessidade de questionar e não aceitar o lugar de subordinação da mulher dentro e fora da Igreja.
Na mesma época da criação do CDD, em uma entrevista concedida à Veja, ela defendeu a descriminação e a legalização do aborto. À publicação ela afirmou que o aborto não era um pecado e que teria passado a defender o ato a partir do convívio com mulheres pobres da periferia de Recife, cidade onde lecionou filosofia e teologia e viveu por 34 anos. A declaração lhe rendeu uma punição do Vaticano chamada de “silêncio obsequioso” que lhe proibiu de dar aulas, conceder entrevistas e a obrigou a passar um período na Europa estudando.
“Embora religiosa, a Igreja é uma instituição social e de fato é dirigida por homens. Porém, nos dias de hoje somos todas e todos convidados a participar na edificação das sociedades humanas. A Igreja é uma instituição de peso social grande e não podemos, nós que conhecemos suas teorias e práticas nos eximir da responsabilidade de mudar atitudes e teorias anacrônicas que subsistem nela e impedem a justiça nas relações humanas. Numericamente na sociedade [nós mulheres] somos a maioria, mas não temos a mesma força de decisão nos rumos da sociedade. Na Igreja é bem mais difícil, mas hoje já há muitas mulheres tentando imprimir as marcas de uma justiça de gênero em muitas instituições religiosas e reformulando conteúdos nessa linha. Os conflitos são inevitáveis, mas há pequenos sinais de mudança”, explica.
Depois da punição, passou um período na Bélgica, mas, o que foi lhe imposto como um castigo para calá-la, teve o efeito contrário, pois irmã Ivone seguiu falando e escrevendo sobre toda e qualquer causa que considera relevante, mesmo que desagrade a igreja. Em um de seus mais recentes ‘atos de rebeldia’, ela se manifestou sobre o terrível episódio da menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada pelo tio por quatro anos.
Apesar de a Justiça ter autorizado o aborto previsto em lei, por se tratar de estupro, um grupo de conservadores protestou em frente ao hospital. Além disso, religiosos fizeram muitas críticas, incluindo o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o bispo Walmor Oliveira de Azevedo, que, através de nota, disse que a “a violência do aborto não se explica” e que a interrupção da gestação era “crime hediondo”.
Como resposta, a freira já acostumada a ter opiniões que não vão ao encontro à Igreja Católica, escreveu um artigo no qual condenou aqueles que se manifestaram contra o aborto realizado dizendo que a questão foi tratada como tema político e religioso e os acusou de ‘amar mais as leis religiosas caducas do que as dores reais que assolam meninas e mulheres, amar e defender mais interpretações sacrificiais da Bíblia do que a vida real e provisória, amar mais as vidas futuras do que as presentes e com isso condenar vítimas de estupros e acusar meninas, jovens e mulheres estupradas de infanticídio”.
“Vivo desafios todos os dias da minha vida. Os desafios são as novas perguntas que a vida nos faz e que temos que responder a ela. Dependendo do lugar onde nos situamos as vezes os desafios são maiores ou menores e nem sempre sabemos como responder a eles. Essa experiência de ‘não saber’ tem me desafiado muito nos últimos anos”, finalizou.