Juiz explica por que reduzir a maioridade penal aumenta a violência
Iberê De Castro Dias, Juiz Titular da Vara da Infância e da Juventude Protetiva e Cível de Guarulhos, é contra a redução da maioridade penal. No texto abaixo, de sua autoria, ele analisa os principais argumentos de quem defende que adolescentes a partir de 16 anos possam ir para a cadeia.
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A situação atual da violência urbana é insustentável. Não dá mais. A Segurança Pública perde feio em todos os Estados. Parar o carro no farol é quase um ato de resistência. Passou da hora de fazer algo a respeito. Reduzir a maioridade é um caminho óbvio. Está aí, fácil, só aprovar uma “PECzinha” e já era. “Metemos na jaula esses bandidinhos vagabundos travestidos de adolescentes da periferia, e resolvemos boa parte do problema.” Parece óbvio.
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Acontece que, sintomaticamente, todas as categorias profissionais que lidam de perto com adolescentes são contrárias à redução. A Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude é contrária. As Coordenadorias da Infância e da Juventude de todos os Tribunais de Justiça são contrárias. A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público é contrária. A OAB é contrária. A Sociedade Brasileira de Pediatria é contrária. A Sociedade Brasileira de Psicologia é contrária. O Conselho Nacional de Assistência Social é contrário.
São entidades de profissionais que convivem diariamente com a questão e estudam arduamente o tema. Conhecem bem as causas, a dinâmica, o histórico que leva adolescentes à criminalidade. Correm os mesmos riscos de sofrerem com a violência. E são contra a redução. Porque sabem que a medida é um despropósito. Veja os motivos navegando nas abas abaixo.
1. Impunidade
“Esses moleques fazem isso porque não acontece nada com eles. Adolescentes têm permissão para matar, roubar e estuprar à vontade. Somos o país da impunidade”
O Estatuto da Criança e do Adolescente já prevê consequências para adolescentes que pratiquem atos infracionais. Inclusive com restrição de liberdade. Só no Estado de SP, em 3/7/15, havia 9.978 adolescentes internados. E outras dezenas de milhares cumprindo medidas socioeducativas de natureza diversa, como liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade.
Ao final de 2012, havia no país 20.532 adolescentes internados e 89.718 adolescentes cumprindo medidas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade. Adolescentes não ficam impunes.
2. Certo e errado
“Aos 16 anos, qualquer pessoa já sabe o que é certo, ou errado”
Se você demorou 16 anos para entender “o que é certo” e “o que é errado”, na boa, tem algum problema aí. Qualquer pessoa de 3 anos sabe o que é certo ou errado. A razão da imputabilidade penal não está em “saber o que é certo e o que é errado”, mas na capacidade de se refrear diante da possibilidade de fazer “o que está errado”.
Isso é, grosso modo, função do córtex pré-frontal, que só está suficientemente (mas não totalmente) desenvolvido para tanto por volta dos 18 anos. Só a partir de então é que se pode exigir de alguém que contenha seus impulsos, a ponto de ser punido, caso não o faça.
É por isso que, segundo a UNICEF, órgão da ONU voltado para a infância, 18 anos é a idade de maioridade penal adotada por 79% dos países, incluindo a quase totalidade de Europa e América do Sul.
E não faltam países que, para pessoas entre 18 e 21 anos, ainda analisam individualmente a maturidade de quem pratica crime, para saber se os mecanismos cerebrais de contenção estão suficientemente desenvolvidos e, só então, decidir se a punição a ser aplicada é a de adulto, ou a de adolescente. É o sistema de justiça “infanto-juvenil”, vigente em Alemanha, Escócia, Espanha, Grécia, Itália e Holanda, por exemplo.
3. Voto
“Quem já pode votar também já pode ser preso”
Os requisitos psicológicos necessários para escolher seus representantes são distintos daqueles necessários para se conter diante da possibilidade de praticar uma infração legal. Fora que adolescentes entre 16 e 18 anos podem votar, mas não podem ser eleitos, justamente por conta da imaturidade psicológica.
Além do mais, o voto é facultativo para pessoas entre 16 e 18 anos. Nem todos os adolescentes dessa faixa etária tiram título eleitoral. Se fosse para atrelar uma coisa a outra, só poderiam ir presos aqueles que já tivessem tirado o título? Além de não fazer o menor sentido, isso ainda desencorajaria adolescentes de participar da vida política do país.
Aliás, se a imputabilidade penal for rebaixada para 16 anos, por questão de congruência, essa também terá que passar a ser a idade em que se poderá consumir bebida alcoólica, tirar carteira de motorista, ou tirar porte de arma.
4. Direitos humanos
“Eu não estou nem aí para esse negócio de ressocialização. Isso é coisa desse povinho dos Direitos Humanos. Esses bandidinhos mirins não têm recuperação. Quero mais é que sejam punidos e fiquem longe da sociedade pelo maior tempo possível”
No Direito brasileiro (e do resto do mundo civilizado), punição não é fim em si. Pena criminal não serve para retribuir o mal que o criminoso causou. Isso tem outro nome. Vingança social. E vingar-se, pura e simplesmente, quanto mais à custa de dinheiro público, não é das ideias mais sensatas, especialmente se os estudos demonstram que os punir com prisão aumentará, no fim das contas, a violência urbana.
Reprimenda criminal serve para prevenir a reiteração de condutas similares, seja pelo exemplo dado aos demais, seja pela reeducação de quem praticou ato que prejudicou a sociedade.
Afastar da sociedade, pura e simplesmente, os autores de atos delituosos é um dos principais fundamentos da pena de morte, que não é admitida no Brasil. Aliás, nem no Brasil, nem na vasta maioria do mundo civilizado (Canadá, Austrália, Portugal, Espanha, França Itália, Suíça, Áustria, Alemanha, Holanda, Bélgica, Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda, Irlanda do Norte, Noruega, Suécia, Finlândia, Islândia, Dinamarca, Grécia, Polônia…). Japão e 31 estados americanos, é bem verdade, ainda admitem pena de morte. Assim como Afeganistão, Paquistão, Irã, Iraque, Líbia, Iêmen, China, Arábia Saudita, Kwait, Vietnam, Coréia do Norte, Sudão. Ah, e o Estado Islâmico…
E o pensamento de que haja pessoas “que não tenham recuperação” não encontra qualquer respaldo na ciência. Fora que é um dos princípios de que o nazismo se valeu para executar negros e judeus. Não foi das passagens mais brilhantes da história da humanidade. A questão está em aplicar as técnicas adequadas para ressocialização. E encarcerar adolescentes, como já está provado, não é uma delas.
5. Exemplo
“Esses vagabundinhos precisam ir para a cadeia, para que sirvam de exemplo aos demais vagabundinhos”
Servir de exemplo realmente é uma das funções da medida repressiva. Finalmente uma dentro. Ou quase. O exemplo dado a adolescentes com a possibilidade da internação tem se mostrado muito mais eficiente para prevenir a prática de novas condutas similares, que o exemplo dado a adultos pelas cadeias.
Nas cadeias, o índice de reincidência de adultos chega a 70%. Na Fundação CASA, adolescentes reincidentes são cerca de 15%, segundo entrevista concedida à rádio Joven Pan, pela Presidente da Instituição, Berenice Gianella. Esse número era de 29% em 2006, segundo o site da própria instituição. Com aprimoramentos do serviço, caiu para menos da metade. Chegou a ser de 12,8%, em fevereiro de 2010. Fica evidente que o sistema socioeducativo é bem mais adequado para a finalidade de reprimir condutas similares que o sistema prisional de adultos.
Mais grave ainda é a conclusão alcançada em pesquisa do Centro de Controle de Doenças e Prevenção dos EUA (CDC). Adolescentes encarcerados ao lado de adultos têm 34% mais chance de voltar a cometer crimes, em comparação a adolescentes privados de liberdade entre adolescente. Cadeia é a pós-graduação do crime.
Aliás, se cadeia realmente intimidasse, adultos se sentiriam desestimulados a cometer delitos. Quanto mais a reincidir. Não é o que se vê. O número de presos no Brasil cresceu 575% desde 1990. Era de 607.731, em junho de 2014, apesar de só haver 376.669 vagas nos presídios (dados do Ministério da Justiça). Somos o quarto país do mundo em número de presos adultos. Estamos longe de sermos o tal país da impunidade. Mas estamos mais longe ainda de sermos o quarto país mais seguro do mundo. Dentre outros motivos, porque punimos muito, mas punimos mal.
No Estado de São Paulo, eram 138.306 presos em junho de 2007. Em junho de 2014, 219.053. Nesse período (do 3º trimestre de 2007, ao 2º trimestre de 2014), segundo dados publicados no site da Secretaria de Segurança Pública de SP, o número de crimes contra o patrimônio, por exemplo, aumentou de 278.523 para 318.611; o de crimes violentos (como homicídios, roubos, estupros, latrocínios) passou de 73.928 para 110.743. Se cadeia intimidasse, o aumento do número de presos faria cair o número de crimes. Não foi o que se observou.
Até mesmo os EUA, país com o maior quantidade de presos do mundo, e um dos poucos que fixam a maioridade penal em idade inferior a 18 anos, estão gradualmente revendo a política de punir adolescentes como adultos, porque os estudos feitos comprovaram que a medida não reduz a criminalidade. Segundo a ONG americana Campaign for Youth Justice, 29 Estados americanos e a capital Washington aprovaram, desde 2005, leis que tornam mais difícil processar e punir adolescentes como se fossem maiores de idade.
Mike Tapia, professor do Departamento de Justiça Criminal da Universidade do Texas e autor de livro sobre o perfil dos jovens encarcerados nos Estados Unidos, disse à BBC Brasil: “A redução massiva do envio de jovens para prisões de adultos ocorreu após estudos mostrarem que prender não tem um efeito considerável nos índices de crimes”. Para ele, a melhor prática para lidar com adolescentes infratores é mantê-los em suas comunidades e famílias, “que são chave no processo de reabilitação. Fora das celas, os jovens correm menos riscos de cometer novos crimes ao fim da pena e se livram dos abusos, da corrupção e da violência comuns a carceragens nos Estados Unidos.” (Matéria publicada no site da BBC Brasil, em 1º/4/15)
Segundo a UNICEF, dos países que, em algum momento, reduziram a maioridade penal, sabe quantos observaram redução da criminalidade como consequência? Nenhum. Pois é. Foi isso, aliás, que fez com que Alemanha e Espanha revissem suas políticas e voltassem atrás na decisão de reduzir a maioridade.
6. Tráfico
“Os traficantes usam os ‘dimenor’ para se safarem. Reduzir a maioridade é um jeito de enfraquecer o tráfico e de tirar esses adolescentes daquele meio”
Adolescentes estão no tráfico porque são mão-de-obra abundante e barata. A imaturidade psicológica dos adolescentes faz com que sejam presas fáceis. Seduzi-los é molezinha. Em uma noite de sábado, um adolescente pode ganhar o que a mãe não ganha em um mês como empregada. Grana abundante, mulher à vontade e respeito no meio em que transitam. Tudo o que sempre quiseram e nunca tiveram.
Muitos são usuários e trabalham do tráfico em troca de drogas, ou para pagar dívidas com a aquisição de drogas. Se vão ser mandados para a cadeia ou se serão internados na Fundação Casa não tem a menor importância. Há milhares de adolescentes privados de liberdade, condenados por tráfico de drogas. E, de novo, se cadeia intimidasse, não haveria adulto traficante. Mas, no tráfico, o número de adultos é incomparavelmente maior que o de adolescentes. Aliás, em muitos casos de condenação por tráfico, o tempo que um adolescente ficará internado é maior que o tempo que um adulto ficará preso.
O pior é que, se punir adolescentes de 16 e 17 anos como adultos tirasse-os do tráfico, bastaria que os chefes do tráfico passassem a recrutar adolescentes mais novos, com 15, 14, 13, 12 anos… Seriam pessoas ainda mais vulneráveis, com ainda menos maturidade para lidar com as dificuldades por que passariam, e com consequências psicológicas muito mais profundas e difíceis de serem revertidas posteriormente.
7. Solução
“É muito discursinho pró direitos humanos. Se você acha que meter na cana esses meliantes não é solução, então fala aí como resolver!”
Educação, serviço social e vigilância. Políticas públicas. Não há atalhos. Redução da maioridade nunca resolveu nada. Estudo realizado pelos economistas Daniel Cerqueira (Ipea) e Rodrigo Moura (FGV) concluiu que a cada 1% de aumento na parcela de adolescentes de 15 a 17 anos que frequentam a escola, os homicídios caem 5,8%. Mas cerca de 17% dos adolescentes de 15 a 17 anos do país estavam fora da escola em 2013 (Folha de S. Paulo, 5/7/15, p. B12).
Pesquisa feita pelo Degase, órgão responsável pela internação de adolescentes no RJ, apurou que 95% dos internados não haviam concluído sequer o ensino fundamental e eram provenientes de famílias com renda mensal inferior a dois salários mínimos. Estudo realizado pela USP em 1995 apontou dados similares, com o adendo de que, dentre os raros internos que estavam no ensino médio, apenas 9,1% eram reincidentes; já dentre adolescentes que só cursaram até a 4ª série do ensino fundamental, o índice de reincidência era o triplo.
A violência produzida por adolescentes também é resultado do meio violento em que estão inseridos. Onze mil adolescentes foram assassinados em 2012 no Brasil, segundo o Índice de Homicídios na Adolescência, produzido pela UNICEF. Dentre 192 países analisados, somos o segundo país do mundo que mais mata adolescentes (em números relativos, somos o sexto, com 17 a cada 1.000 adolescentes assassinados, atrás de El Salvador, Guatemala, Venezuela, Haiti e Lesoto).
Meninos têm 11,5 vezes mais chances de serem assassinados que meninas. E adolescentes negros, quase 3 vezes mais chances de morrer que adolescentes brancos. O recorte, fica evidente, é social. A violência das áreas periféricas é muito mais cruel com os adolescentes, que reproduzem o que lhes é ensinado. E ensinamos morte, bem mais que literatura.
Soluções imediatas e milagrosas são buscadas em todas as áreas da vida. Raramente existem. Não vamos consertar séculos de degradação social em uma canetada.
Enquanto o debate estiver voltado a como punir os atos de violência que já ocorreram, continuaremos enxugando gelo com manta térmica. Debater punições mais severas é como discutir a marca do cadeado que se vai colocar na porta já arrombada. Quer por razões humanistas, altruístas, de quem está preocupado em construir uma sociedade menos desigual, mais inclusiva, mais participativa, quer pela egoísta e pragmática razão do “o que me importa é diminuir o risco de que eu seja vítima da violência”, reduzir a maioridade penal não ajudará em nada.
A solução só será eficaz se atacar as causas da criminalidade. Desigualdade social, baixos níveis de escolaridade e cultura de violência formam um software avançadíssimo para gerar a situação que está aí. O adolescente com a arma no farol é só a mídia do software.
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